Os Śramaṇas e o Yoga Clássico de Patañjali: Uma Via de Assimilação.
- INatha

- 29 de ago.
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Quando falamos em Yoga hoje, nossa mente se volta quase sempre para imagens de posturas corporais, práticas respiratórias e a busca por bem-estar físico e mental. No entanto, o Yoga nasceu em um contexto histórico, religioso e filosófico muito mais amplo e complexo, enraizado em tensões culturais entre diferentes tradições da Índia antiga.
De um lado, encontramos o brahmanismo védico, centrado na autoridade dos Vedas, nos rituais sacrificiais (yajña), na estrutura social rígida dos varṇas (castas) e no poder do sacerdócio brâmane.
Do outro, a partir do século VI a.C., floresceu um vasto movimento contra-cultural conhecido como tradições śramaṇicas, composto por renunciantes, ascetas errantes e buscadores espirituais que rejeitavam a centralidade dos rituais védicos, a autoridade bramânica e a rigidez social.
Os śramaṇas — termo que deriva da raiz sânscrita śram, “esforço, disciplina, ascese” — buscavam a libertação do ciclo de renascimentos (saṃsāra) por meio da disciplina ética, da meditação, do jejum, da não-violência e de diferentes técnicas de austeridade. O Jainismo, o Budismo e as correntes Ajīvikas são apenas alguns dos caminhos formalizados que nasceram desse grande campo śramaṇico.
É dentro dessa polaridade — brahmanismo de um lado, śramaṇas de outro — que o Yoga clássico de Patañjali (c. século II a.C. a II d.C.) deve ser entendido. O Yoga Sūtra surge como uma codificação que preserva muitos elementos do ethos śramaṇico, mas sob a linguagem, a metafísica e a organização do pensamento bramânico. Nesse sentido, Patañjali representa não apenas um sistematizador genial, mas também um momento histórico de assimilação e reorganização das práticas śramaṇicas pelo horizonte brahmânico.
Caminhos de Assimilação: do Śramaṇismo ao Yoga de Patañjali
Ascetismo e Disciplina (Tapas → Niyamas)
O ascetismo śramaṇico, que incluía jejuns, vigílias e controle radical dos sentidos, foi reinterpretado por Patañjali como tapas, uma das práticas dos niyamas. Não se trata mais de mortificação extrema, mas de disciplina canalizada para a purificação do corpo e da mente.
Meditação e Contemplação (Dhyāna → Aṣṭāṅga Yoga)
As práticas de concentração e absorção meditativa, muito desenvolvidas pelos budistas e jainistas, foram incorporadas na estrutura do aṣṭāṅga yoga (os “oito membros do yoga”), especialmente nos estágios de dhāraṇā, dhyāna e samādhi.
Ética Universal (Ahiṃsā e Yamas)
A ênfase śramaṇica na não-violência (ahiṃsā), no desapego e na verdade encontrou eco direto nos yamas de Patañjali, que apresentam princípios éticos universais não dependentes de ritual ou casta.
Caminho da Libertação (Mokṣa e Kaivalya)
Tanto os śramaṇas quanto o Yoga clássico compartilham a meta da libertação. No budismo, esse estado é o Nirvāṇa; no jainismo, a kevalajñāna; em Patañjali, o kaivalya, o isolamento puro da consciência em relação à matéria.
Reinterpretação Teísta (Īśvara-praṇidhāna)
Aqui vemos a mão do brahmanismo: o Yoga de Patañjali introduz Īśvara-praṇidhāna (a devoção ao Senhor) como um dos caminhos para a quietude mental.
Essa abertura ao teísmo não era central para muitas tradições śramaṇicas — especialmente o budismo — mas foi um modo de tornar a disciplina ascética compatível com a estrutura religiosa védica.
O contexto dos śramaṇas e sua influência
Entre os séculos VI e IV a.C., as tradições śramaṇas (jainas, budistas, ājīvikas, ascetas errantes) já haviam estabelecido um campo alternativo de espiritualidade à ordem védico-bramânica.
Essas tradições valorizavam:
Renúncia ao ritual sacrificial em favor da prática direta de austeridade (tapas), ética e meditação.
Ênfase na experiência pessoal da libertação (mokṣa, nirvāṇa), não na mediação sacerdotal.
Práticas meditativas e contemplativas sistematizadas em esquemas como os dhyānas (absorções) e técnicas respiratórias.
Essa tradição já havia "colonizado" boa parte do imaginário religioso da Índia no tempo em que o Yoga de Patañjali foi redigido.
O projeto brahmânico de assimilação
Após a ascensão e consolidação do budismo e do jainismo, o bramanismo não pôde mais ignorar as correntes śramaṇas.
O que ocorreu foi uma absorção seletiva:
Incorporar técnicas de meditação, disciplina mental e ascese.
Reinterpretar esses elementos dentro de um quadro teísta-samkhya, subordinando-os a uma ontologia que ainda preservava o status do puruṣa (espírito) e do īśvara (Senhor).
Os Yoga Sūtras são talvez o melhor exemplo desse movimento: uma tradição de ascetas errantes e não-ritualistas foi traduzida para uma linguagem aceitável para a ortodoxia.
Marcas śramaṇas no Yoga de Patañjali
Aṣṭāṅga (oito membros): o sistema ético-meditativo (yama, niyama, āsana, prāṇāyāma, pratyāhāra, dhāraṇā, dhyāna, samādhi) é claramente influenciado pela tradição śramaṇa de codificação progressiva da disciplina interior.
Os yamas e niyamas lembram o código ético jaina e budista.
Dhyāna e samādhi são herdeiros diretos dos esquemas meditativos budistas e jainas.
Kaivalya (isolamento/libertação): a meta da libertação não mais é descrita em termos de nirvāṇa (extinção), mas como isolamento do puruṣa em relação ao prakṛti. Contudo, a aspiração à liberação é śramaṇa em sua origem.
Tapas e disciplina ascética continuam presentes, mas domesticados, integrados ao conjunto dos niyamas.
A estratégia de legitimação bramânica
Patañjali não apresenta o yoga como uma revolução antibramânica, mas como um complemento filosófico do Sāṃkhya, dentro do espaço ortodoxo dos darśanas.
A inserção do conceito de Īśvara (Senhor especial) é um ponto de "conciliação teísta", que serve para integrar o yoga ao ambiente devocional hindu, algo ausente no radicalismo śramaṇa.
Dessa forma, práticas originalmente marginais — jejum, contemplação, meditação profunda, controle respiratório — foram retraduzidas como ortodoxia.
Síntese histórica
Śramaṇas (VI–IV a.C.) → técnicas de ascese e meditação
Budismo/Jainismo → sistematizações éticas e meditativas (dhyānas, vinayas, tapas severo)
Bramanismo em crise (III a.C. em diante) → necessidade de absorção
Yoga de Patañjali (II a.C.–IV d.C.) → codificação do śramaṇa no formato ortodoxo, conciliado com Sāṃkhya e com um elemento devocional (Īśvara praṇidhāna).
Conclusão: entre o Renunciante e o Sacerdote
O Yoga de Patañjali nasce como uma ponte: de um lado, ele preserva a radicalidade śramaṇica, o impulso de ruptura com o mundo e a busca pela libertação interior; de outro, reorganiza essas práticas de maneira aceitável para o horizonte brahmânico, conferindo ao Yoga um lugar dentro da tradição ortodoxa.
Assim, podemos dizer que o Yoga clássico é ao mesmo tempo herdeiro e mediador. Ele herda dos śramaṇas a disciplina, a ética e a meditação; mas media com o brahmanismo ao incluir categorias metafísicas compatíveis com o Sāṃkhya e com a ideia de um Senhor eterno (Īśvara).
Para nós, praticantes contemporâneos, compreender essa dialética é essencial. Pois ao praticarmos Yoga, tocamos tanto a dimensão radical e contracultural dos renunciantes quanto a dimensão ordenadora da tradição bramânica.
Entender esse encontro histórico nos permite situar melhor o Yoga em sua profundidade: não como uma prática isolada ou neutra, mas como fruto de tensões, diálogos e sínteses espirituais.
O Yoga de Patañjali é, portanto, um espelho de integração: nele vemos refletida a potência transformadora dos śramaṇas e a capacidade assimiladora do brahmanismo.
E talvez seja justamente nessa tensão entre renúncia e integração, entre ruptura e síntese, que o Yoga se mantém vivo até hoje, como um caminho que une interioridade radical e pertencimento cultural.


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