Mokṣa Etimologia, Sentidos Antigos e Quando Aparece Como “Libertação” Existencial:
- INatha

- 29 de ago.
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Nos estudos sobre a tradição védica e a formação da filosofia indiana clássica, um ponto sempre instigante é observar como conceitos que hoje parecem centrais nasceram, em realidade, em meio a tensões históricas, disputas culturais e processos de assimilação. Essa perspectiva nos convida a olhar com cautela para noções como mokṣa — tão familiarizada atualmente como a meta final da vida humana dentro do esquema dos puruṣārthas — e a perguntar se, de fato, ela já ocupava esse lugar no mais antigo horizonte védico.
Um dado curioso emerge quando comparamos dois sistemas que se tornaram normativos na tradição hindu: o dos quatro puruṣārthas (dharma, artha, kāma e mokṣa) e o dos quatro āśramas (brahmacarya, gṛhastha, vānaprastha e saṃnyāsa).
Em ambos os casos, temos uma narrativa progressiva: no primeiro, uma ordenação das metas existenciais; no segundo, um encadeamento dos estágios de vida. E em ambos, o último elemento introduz uma clara inflexão ascética: mokṣa, como liberação do ciclo de renascimentos, e saṃnyāsa, como renúncia final ao mundo social e ritual.
Essa coincidência convida a uma hipótese: seria possível que a institucionalização de mokṣa no fim dos puruṣārthas e a institucionalização de saṃnyāsa no fim dos āśramas compartilhassem uma mesma matriz histórica — isto é, o movimento de assimilação dos ideais ascéticos śramaṇicos pela ortodoxia bramânica?
Antes de responder, é preciso situar o problema.
A palavra mokṣa tem sua etimologia ligada à raiz muc- (“soltar”, “libertar”, “desatar”). Em contextos védicos mais antigos, o termo não aparece de modo sistemático, e mesmo quando surgem cognatos como mokṣati (“ele liberta”), não há ainda o sentido técnico-filosófico de “liberação espiritual” no sentido pós-upaniṣádico.
Por outro lado, nos movimentos śramaṇicos — budistas, jainas e ājīvikas — a noção de libertação (nirvāṇa, kevala, mokṣa) já se consolidava como centro doutrinário, desvinculada do aparato sacrificial e ritual bramânico.
No processo de confronto e diálogo entre a ortodoxia védica e as correntes śramaṇicas, as Upaniṣads tardias, o dharmaśāstra e a literatura épica demonstram um claro movimento de incorporação: não rejeitar o ideal da liberação, mas reposicioná-lo dentro de uma moldura bramânica.
Assim, a pergunta central que se propõe aqui não é apenas filológica — “quando a palavra mokṣa surge na literatura” — mas também histórico-filosófica: até que ponto a inclusão de mokṣa no horizonte dos puruṣārthas é resultado da mesma dinâmica que levou à inclusão de saṃnyāsa nos āśramas?
Esse alinhamento hipotético — mokṣa como último puruṣārtha e saṃnyāsa como último āśrama — pode ser lido como a forma bramânica de domesticar e institucionalizar a potência disruptiva dos ascetas errantes, absorvendo-os em uma ordem de vida e pensamento que mantivesse a autoridade védica como eixo.
O ensaio que segue, portanto, não busca oferecer uma conclusão definitiva, mas abrir o campo para essa investigação. Ele será desenvolvido em dois movimentos complementares:
Análise da presença (ou ausência) da palavra mokṣa nas camadas védicas mais antigas e seu deslocamento semântico até tornar-se um termo técnico.
Exploração da hipótese de convergência entre os sistemas dos puruṣārthas e dos āśramas no contexto de assimilação śramaṇica, examinando se a função estrutural de mokṣa e de saṃnyāsa no final de cada ciclo pode ter a mesma raiz histórica.
Mais do que oferecer respostas prontas, esta investigação pretende oferecer instrumentos críticos para compreender a historicidade de conceitos que, de tão naturalizados, costumamos considerar eternos.
Afinal, o que chamamos hoje de “hinduísmo” é fruto de uma longa história de encontros, choques e reelaborações, na qual a palavra mokṣa talvez seja uma das mais reveladoras.
Etimologia sólida
mokṣa (मोक्ष) deriva da raiz sânscrita √muc (“soltar, libertar, deixar ir”). Essa etimologia é bem aceita em dicionários e nos estudos de história das ideias indianas. Encyclopedia BritannicaBiblioteca da Sabedoria
Uso antigo (Vedas → Brāhmaṇas): sentido ainda não plenamente “existencial”
Nos estratos mais antigos (Ṛgveda) e nos Brāhmaṇas, a raiz muc/mukti aparece em contextos de “libertação” mais concretos: libertar de inimigos, libertar do aprisionamento, liberação ritual. Ainda não se encontra aí uma doutrina sistemática de libertação metafísica do saṃsāra nos termos upaniṣádicos. (Veja síntese em estudos introdutórios sobre Upaniṣads e história das ideias). Encyclopedia Britannica
Upaniṣads: aparecimento da “libertação” como categoria metafísica
Nas Upaniṣads (texto-chave: Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad; também Kaṭha Upaniṣad, Chāndogya etc.) já se encontra formulação explícita de libertação do ciclo de renascimentos, da identificação com o puruṣa/ātman — o que configura o mokṣa como objetivo espiritual último. A tradição acadêmica situa essas ideias (a emergência da reflexão sobre ātman/brahman e libertação) aproximadamente no 1º milênio a.C., muito próximo temporalmente ao florescimento dos movimentos śramaṇicos. Wikipedia+1
Síntese provisória: lexicalmente mokṣa é antigo (raiz √muc), mas a circulação da noção de mokṣa como “libertação metafísica/escapamento do saṃsāra” toma forma clara nas Upaniṣads, numa época em que śramaṇas (budismo, jainismo, etc.) também sistematizam teorias de libertação. Há forte convergência cronológica. Encyclopedia BritannicaWikipedia
B — Sannyāsa e o esquema dos āśramas: quando e como a renúncia foi institucionalizada
Evolução do esquema āśrama
Os Dharmaśāstras (e.g. Manuśāstra / Manu) e os Dharmasūtras codificam a ideia dos estágios de vida e detalham deveres; historiografia moderna (Patrick Olivelle, entre outros) demonstra que o sannyāsa como quarto āśrama aparece como sistematização posterior, resultado de um processo de normatização ao longo do primeiro milênio a.C. e depois. A consolidação normativa do sistema dos quatro āśramas deve ser entendida como um esforço brahmânico para integrar a renúncia. AmazonWikipedia
Dados de datação
Textos normativos que tratam do āśrama-system (Dharmasūtras, Manusmṛti) foram redigidos/compilados entre aproximadamente o 2.º séc. BCE e os primeiros séculos da Era Comum; a codificação explícita dos quatro āśramas aparece consolidada nesses corpus. Isso não implica que a prática de renúncia não existisse antes — apenas que a institucionalização explícita e a sua normatização social são posteriores à emergência dos śramaṇas. WikipediaAmazon
Síntese provisória: sannyāsa existia como prática ascética (e fora do âmbito bramânico) antes de ser incorporada como etapa oficial (saṃnyāsa como āśrama) na literatura de dharma; a evidência textual aponta para institucionalização e regulamentação posteriores. Amazon
C — Hipótese: o alinhamento mokṣa (nos puruṣārthas) e sannyāsa (nos āśramas) como duas faces da mesma assimilação
Observação factual
O esquema dos puruṣārthas (dharma, artha, kāma, mokṣa) é uma formulação clássica; porém a inclusão explícita de mokṣa como “o quarto objetivo” e a sua articulação sistemática como fim último da vida humana parecem cristalizar em textos pós-Upaniṣadicos e em corpora normativos, na mesma janela histórica (1º milênio a.C. → primeiros séculos d.C.) em que os āśramas são formalizados. WikipediaEnciclopédia Acadêmica
Mecanismo plausível de assimilação
A interpretação mais bem apoiada na bibliografia atual é que o brahmanismo respondeu ao desafio e à atração das correntes śramaṇicas de duas maneiras complementares:
a) Integração normativa — transformar a renúncia e a ideia de libertação em etapas e metas legítimas dentro do ordenamento social (āśrama, puruṣārtha).
b) Reformulações filosóficas — reinterpretar a libertação em termos de ātman/brahman (Upaniṣads) em linguagem que pudesse servir ao discurso ortodoxo.
Ou seja: a incorporação de mokṣa como objetivo último dos puruṣārthas e a inserção de sannyāsa como estágio final dos āśramas são muito provavelmente efeitos paralelos do mesmo processo de assimilação institucional do impulso śramaṇico. (Essa é a hipótese já sustentada por estudos recentes). AmazonWikipedia
Nível de confiança
Forte: em que houve sincronia cronológica entre emergência das teorias de liberação nas Upaniṣads e a consolidação dos movimentos śramaṇicos; também forte é a evidência de que o āśrama-system foi codificado depois. WikipediaAmazon
Moderada: em que mokṣa como quarto puruṣārtha é diretamente “emprestado” dos śramaṇas — isto é uma explicação plausível e bem arguida, mas as fontes não registram um ato único de “transferência”; tratou-se de um processo gradual de interlocução, reescrita e legitimação. WikipediaAmazon
D — Passagens-texto e edições / traduções acadêmicas recomendadas (fontes primárias e estudos críticos)
Se você quer checar diretamente nas fontes primárias, recomendo começar por estas passagens e edições confiáveis:
Textos primários (Upaniṣads / Brāhmaṇas / Dharmaśāstras):
Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad — procure as seções que discutem a natureza do ātman e a libertação; traduções: The Upanishads (ed./trans. Patrick Olivelle — Oxford). Wikipedia
Kaṭha Upaniṣad — tratam da relação entre o indivíduo e a morte/libertação; edições em traduções críticas (Olivelle, Max Müller). Wikipedia
Manusmṛti (Manava Dharmashastra) — capítulos sobre āśrama, deveres e a ordem social; edições críticas e traduções modernas (G. Bühler traduz/ed., e comentários contemporâneos). Data aproximada: compilação entre sécs. 2 a.C.–2 d.C. (ver debate de datação). Wikipedia
Estudos acadêmicos essenciais (secundária, crítica):
Patrick Olivelle, The Āśrama System: The History and Hermeneutics of a Religious Institution — análise detalhada da formação do sistema āśrama e da institucionalização do sannyāsa. (Leitura obrigatória). Amazon
Johannes Bronkhorst, Greater Magadha — contexto cultural e presença dos movimentos śramaṇicos no Norte da Índia. (Contextualização histórica). Wikipedia
Artigos enciclopédicos e sínteses confiáveis: Moksha (Britannica), Puruṣārtha (enciclopédias acadêmicas), que dão visões de síntese e referências primárias. Encyclopedia BritannicaWikipedia
E — Como eu sugiro que você verifique (passo a passo prático)
Leia uma boa tradução comentada da Bṛhadāraṇyaka e da Kaṭha Upaniṣad (Olivelle; ou Max Müller para leitura comparativa) — identifique usos de mukta/mokṣa/mukti. Wikipedia+1
Leia os capítulos correspondentes do Manusmṛti sobre āśrama e saṃnyāsa (tradução crítica) para ver a formulação normativa. Observe a linguagem e a função social atribuída ao saṃnyāsa. Wikipedia
Leia Olivelle (The Āśrama System) para a análise histórica — ele mostra minuciosamente o desenvolvimento textual e hermenêutico. Amazon
Compare com estudos sobre śramaṇas (Bronkhorst, Dundas) para situar o movimento histórico que pressionou as elites bramânicas. WikipediaBiblioteca da Sabedoria
F — Conclusão
A evidência filológica e textual mostra que a ideia de libertação (mokṣa) evoluiu de sentidos concretos (libertação ritual/temporal) para um significado filosófico-existencial nas Upaniṣads, em paralelo cronológico ao surgimento dos movimentos śramaṇicos. Encyclopedia BritannicaWikipedia
O sannyāsa como estágio formal dos āśramas é uma normatização mais tardia, e a análise moderna (Olivelle) vê essa normatização como parte do modo pelo qual o brahmanismo integrou a renúncia (e, por consequência, a ideia de libertação) em sua ordem social. AmazonWikipedia
Portanto, a hipótese de que a integração de mokṣa nos puruṣārthas e a institucionalização do sannyāsa são manifestações correlatas do mesmo processo de assimilação śramaṇica pelo brahmanismo é plausível e bem apoiada por estudos contemporâneos, embora as fontes primárias mostrem um processo gradual, multilocal e não um único “ato de transferência”.


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