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Krama (क्रम): Um levantamento acadêmico.

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    INatha
  • 15 de ago.
  • 8 min de leitura


Introdução

O termo क्रम (krama), de origem sânscrita, apresenta uma trajetória semântica e conceitual que atravessa milênios de história intelectual, religiosa e ritual do subcontinente indiano. Partindo do sentido literal de “passo” e “sequência”, seu uso se expandiu para designar ordem, método, gradação e procedimento, alcançando funções especializadas em diferentes domínios do Sanātana Dharma, nas escolas védicas, nos sistemas de Vedānta, nas tradições tântricas e, de modo particular, no universo doutrinário dos Nāthas.

Este estudo busca oferecer um levantamento extenso, detalhado e interdisciplinar do termo, articulando três eixos principais:


  1. Evolução linguística e semântica — a partir da etimologia e do campo semântico registrado em léxicos sânscritos clássicos, situando krama na rede de significados derivados da raiz verbal √क्रम् (√kram), que remete à ação de “dar um passo” e “avançar”.

  2. Aplicações no corpus religioso e filosófico do Sanātana Dharma — examinando usos na tradição védica (especialmente no krama-pāṭha), no ritualismo (p. ex., pūjā-krama), na liturgia dos saṃskāra e no Vedānta (com a noção de krama-mukti, a liberação gradual).

  3. Empregos e ressignificações no Tantrismo e na tradição Nātha — analisando o Krama como escola śākta do Śaivismo da Caxemira (Kālīkrama), sua filosofia do tempo e da consciência, a dialética krama/akrama, e a incorporação do conceito no Siddha-Siddhānta dos Nāthas, com ênfase em progressões doutrinais, rituais e yóguicas.


Ao percorrer esses campos, este trabalho busca demonstrar que krama não é apenas um termo técnico ou um elemento lexicográfico, mas sim um operador estrutural que organiza a transmissão do saber, a prática ritual e o itinerário espiritual. Sua presença nas mais variadas escolas reflete um padrão profundo da cultura sânscrita: a tensão criativa entre o processo ordenado e a superação da ordem no reconhecimento direto da Realidade Suprema.

A pesquisa aqui reunida baseia-se em fontes primárias (textos sânscritos em devanāgarī com transliteração IAST), edições críticas e estudos filológicos e históricos de reconhecido rigor acadêmico, de modo a oferecer ao leitor especializado uma ferramenta de referência sólida. Ao final, inclui-se um glossário com os principais termos técnicos, bem como um levantamento bibliográfico comentado para aprofundamento.


1) Etimologia e campo semântico

Devanāgarī: क्रमIAST: kramaRaiz verbal: √क्रम् (√kram, “dar um passo, avançar, ir”)Traduções usuais (pt-BR): passo; série; sequência; ordem; gradação; procedimento; método; sucessão; progresso; modo; arranjo.

Nos léxicos sânscritos clássicos, krama designa, de modo central, “passo” e, por extensão, “ordem/sequência” e qualquer processo que se faça gradativamente (krameṇa, “passo a passo; gradualmente”). O campo semântico inclui ainda termos derivados como akrama (“sem ordem, irregular, fora de regra”), e compostos como krama-pāṭha (modo de recitação em sequência) e krama-mukti (liberação gradual). sanskrit-lexicon.uni-koeln.de


2) Aplicações no Sanātana Dharma


2.1 Védica: krama-pāṭha e a ideia de sequência canônica

Nos sistemas tradicionais de recitação védica, krama nomeia um estilo de encadeamento de palavras: o krama-pāṭha recita as palavras em pares sobrepostos (1-2, 2-3, 3-4…), intermediário entre pada-pāṭha e ghana-pāṭha. Essa técnica preserva, pela redundância ordenada, a integridade textual dos Vedas. humanservices-gov.kailasa.sk

2.2 Ritual e liturgia: pūjā-krama e saṃskāra-krama

Em manuais rituais, krama significa o procedimento ou ordem de execução: pūjā-krama (ordem dos ritos de culto), saṃskāra-krama (sequência dos ritos de passagem) e afins. A literatura brahmânica e śāstrica usa krama para indicar tanto a sequência de atos quanto a conformidade à norma ritual. humanservices-gov.kailasa.sk

2.3 Filosofia védico-bramânica e Vedānta: krama-mukti (liberação gradual)

Na tradição do Vedānta (incluindo Advaita, Viśiṣṭādvaita e outras), krama-mukti designa a libertação em etapas: o praticante de upāsanā (meditação devocional) alcança Brahmaloka e, ao fim de um ciclo, obtém libertação, em contraste com sadyo-mukti/jīvan-mukti (libertação imediata). A doutrina é articulada a partir de passagens como Bhagavad-Gītā 8 (tema do arcirādimārga, “caminho da luz”) e desenvolvida por comentadores vedānticos. Chinmaya International FoundationBiblioteca da Sabedoria+1

Observação terminológica: em contextos vedânticos, krama enfatiza progressão (noética, cosmológica ou soteriológica) em oposição a realizações instantâneas.


3) Krama no Tantrismo (com foco shaiva-śākta)


3.1 Valor semântico-técnico em Tantras

Nos Tantras, krama conserva o sentido de ordenação/processualidade (p.ex., dīkṣā-krama, a ordem de iniciação; pūjā-krama, ordem cultual; sṛṣṭi-krama, ordem da emanação). Em vários sistemas śaiva-śākta, a pedagogia e a ritualidade são expressamente graduais (krameṇa), mesmo quando a meta é uma gnose “supra-sequencial”. humanservices-gov.kailasa.sk

3.2 O Krama como escola do Śaivismo da Caxemira (Kālīkrama)

Além do uso genérico, Krama (com maiúscula) designa uma escola śākta-não-dual do Śaivismo da Caxemira, também chamada Kālīkrama. Ela articula uma metafísica e prática centradas na sequência (krama) de manifestação e reabsorção da consciência como Tempo (kāla), adorando um ciclo de Kālīs (geralmente doze) que representam fases do dinamismo cognitivo-temporal – culminando na superação de toda sucessão (akrama). Essa escola interage com o Trika e o Kaula, sendo comentada por exegetas como Abhinavagupta e Kṣemarāja.

Pesquisas recentes sintetizam: (a) o lugar do Krama na constelação śaiva da Caxemira; (b) sua teologia das Deusas do Tempo; (c) sua ênfase em processos meditativos que “comem” (reabsorvem) o tempo em reverso, até a instantaneidade do reconhecimento (pratyabhijñā), concebida como “não-sequencial” (akrama).

3.3 Krama como método e sua ultrapassagem (akrama)

Autores que estudam o Krama apontam uma dialética krama/akrama: a via é sequencial (métodos graduais, séries de deidades, estágios contemplativos), mas a realização é não-sequencial (instantânea), pois a natureza de Śiva/Consciência não está no tempo. Essa tensão é concebida como pedagogia: procede-se “em ordem” para intuir o “sem ordem”.


4) Krama no Siddha-Siddhānta e na tradição Nātha


4.1 Textos Nātha e vocabulário de krama

Na literatura Nātha, o vocabulário krama/krameṇa aparece de modo recorrente para indicar processos graduais de conhecimento, prática e realização – por exemplo, a exposição “em ordem” dos tattva, das energias e dos estágios de yoga/dhyāna. A edição clássica Siddha-Siddhānta-Paddhati and Other Works of the Nātha Yogis (ed. K. Mallik, 1954) documenta o emprego de krama/krameṇa ao longo do texto sânscrito, inclusive na formulação de progressões de princípios e práticas. Internet Archive+1

Exemplo ilustrativo (trecho curto): “क्रमेण …” (krameṇa, “gradualmente/por etapas”) ocorre diversas vezes na Siddha-Siddhānta-Paddhati para marcar desenvolvimento progressivo de doutrinas e práticas. Internet Archive

4.2 O que é “Siddha-Siddhānta” e por que krama importa

Siddha-Siddhānta identifica um corpo doutrinário Nātha (p.ex., Siddha-Siddhānta-Paddhati, atribuído a Gorakṣanātha/Gorakhnāth). A tradição enquadra o cosmos, o corpo sutil e a prática iogue em séries/ordens interligadas (micro- e macrocósmicas). Assim, krama permeia:

  • a ordenação metafísica (sequência/“ordem” de realidades e princípios),

  • a metodologia yóguica (progressão de disciplinas, upāya, mudrā, etc.),

  • e a soteriologia (estágios de estabilização do conhecimento).

Estudos históricos sobre os Nāthas (Mallinson; Briggs) corroboram o caráter sistemático e gradual das exposições Nātha, no qual krama é categoria de organização da doutrina e da prática. soas-repository.worktribe.com

4.3 Trânsito tântrico: ecos Kaula/Krama no universo Nātha

A tradição Nātha surge num horizonte śaiva tântrico (Kaula, Kāpālika, Trika, Krama). Mesmo que a escola Krama caxemiresa seja uma corrente específica, há intercâmbios de vocabulário e estruturas rituais (p.ex., sequências de deusas/energias, codificação por séries) com liturgias Kaula registradas em estudos filológicos (p.ex., Uttarāmnāya e liturgias Newar). Isso explica a ressonância do termo krama em textos Nātha como designador de ordem ritual, série de devī, sequência de nyāsa e estágios meditativos.

Nota terminológica: a expressão “Siddha-Siddhānta Tantra” ocorre modernamente como rótulo amplo; filologicamente, o texto crítico padrão é a Siddha-Siddhānta-Paddhati. ia600109.us.archive.org


5) Síntese comparativa dos usos de krama


  1. Semântica nuclear: passo → sequência → ordem/graduação → método/procedimento. sanskrit-lexicon.uni-koeln.de

  2. Védico-ritual: krama-pāṭha e pūjā-krama como garantia de ordem e transmissão fiel. humanservices-gov.kailasa.sk

  3. Filosófico-soteriológico (Vedānta): krama-mukti como liberação em etapas; contraste com sadyo/jīvan-mukti. Chinmaya International FoundationBiblioteca da Sabedoria

  4. Tântrico (Śaivismo/Śaktismo): Krama (Kālīkrama) como escola que tematiza a sequência do tempo-consciência e culmina em akrama (o não-sequencial).

  5. Nātha (Siddha-Siddhānta): krama/krameṇa como marcador de progressões doutrinais, rituais e yóguicas; integração de séries micro/macro-cósmicas. Internet Archive+1


6) Glossário (Devanāgarī — IAST — tradução pt-BR)


  • क्रम — krama — passo; ordem; sequência; método; procedimento; gradação. sanskrit-lexicon.uni-koeln.de

  • अक्रम — akrama — sem ordem; irregular; fora de regra; “não-sequencial”.

  • क्रमेन — krameṇa — gradualmente; passo a passo; por etapas.

  • क्रमपाठ — krama-pāṭha — recitação “em cadeia” de termos védicos.

  • पूजा-क्रम — pūjā-krama — ordem/roteiro de culto. humanservices-gov.kailasa.sk

  • क्रममुक्ति — krama-mukti — liberação gradual (em etapas), via upāsanā. Biblioteca da Sabedoria

  • कालीक्रम — Kālīkrama — “Krama” śākta da Caxemira (escola tântrica).

  • उपाय — upāya — meio, método (no Tantrismo/Śaivismo: vias de realização).

  • न्यास — nyāsa — “colocação/instalação” ritual de mantras no corpo.

  • तत्त्व-क्रम — tattva-krama — ordem/graduação dos princípios ontológicos.


7) Bibliografia comentada (seleção)


Léxicos e recursos filológicos

  • Monier-Williams, A Sanskrit–English Dictionary (1899). Entrada क्रम (krama): passo; sequência; ordem; método; gradação; derivados e compostos. Recurso digital: Cologne Digital Sanskrit Lexicon. sanskrit-lexicon.uni-koeln.de

  • (Para aprofundamento: Apte, The Practical Sanskrit–English Dictionary; Vācaspatyam; Śabdakalpadruma — ver edições impressas.)


Veda, ritual e recitação

  • Staal, Frits. AGNI: The Vedic Ritual of the Fire Altar. Berkeley: Asian Humanities Press, 1983. (Contexto geral do formalismo védico e importância da ordem.)

  • Brill (Encyclopedia/Studies): panorama dos modos de recitação (inclui krama-pāṭha).

  • Kanchi Paramacharya, Hindu Dharma (cap. sobre adhyayanam e padrões de recitação). humanservices-gov.kailasa.sk


Vedānta e krama-mukti

  • Bhagavad-Gītā 8 (temas do arcirādimārga, acesso a Brahmaloka, liberação em etapas); materiais didáticos e comentários que explicitam a noção de krama-mukti. Chinmaya International FoundationBiblioteca da Sabedoria

  • Radhakrishnan, S. Brahma-Sūtra: The Philosophy of Spiritual Life. (Contexto clássico da exegese vedântica; cf. tratamento de upāsanā e destinos pós-mortem.) Internet Archive

  • (Para o leitor técnico: edições críticas do Brahma-Sūtra-Bhāṣya de Śaṅkara; comentários de Madhva, Rāmānuja, etc.)


Tantrismo śaiva/śākta e o Krama (Kālīkrama)

  • Dyczkowski, Mark S. G. The Doctrine of Vibration; The Stanzas on Vibration (sobre Śaivismo da Caxemira; discussão do Krama).

  • Sanderson, Alexis. Estudos sobre escolas śaivas/śāktas (história, filologia, liturgia), com menções substantivas ao Kālīkrama e seu lugar no śaivismo caxemirense.

  • Rocher, L. e Rosati, F. (eds.). “Kālī Traditions” – estudos de história e doutrina (inclui materiais sobre doze Kālīs do Krama).

  • Índia Journal of Sanskrit Research: síntese recente do Krama śaiva (metafísica do tempo, akrama, séries devocionais).


Nātha-sampradāya e Siddha-Siddhānta

  • K. Mallik (ed.), Siddha-Siddhānta-Paddhati and Other Works of the Nātha Yogis (Poona Oriental Book House, 1954) — edição de referência; texto sânscrito e materiais correlatos. Internet Archive

  • Siddha-Siddhānta-Paddhati (digitalizações e reimpressões). ia600109.us.archive.org

  • Mallinson, James. Trabalhos sobre a história dos Nāthas e do Haṭhayoga (incl. Brill Encyclopedia of Hinduism; estudos filológicos do corpus Nātha). soas-repository.worktribe.com

  • Briggs, G. W. Gorakhnath and the Kanphata Yogis (1938). (Clássico histórico-etnográfico.)

  • Estudos sobre liturgias Kaula/Uttarāmnāya (ressonâncias tântricas correlatas ao vocabulário de krama nas práticas Nātha).


8) Observações finais de método


  • Polissemia controlada: krama mantém um núcleo semântico (“passo/ordem/sequência”) que se especializa conforme o domínio (recitação, ritual, soteriologia, metafísica).

  • Do gradual ao instantâneo: em Vedānta (krama-mukti) e na escola tântrica Krama, a lógica de etapas convive com a postulação de uma realização imediata (sadyo-/akrama).

  • Nātha e pedagogias seriais: o Siddha-Siddhānta organiza corpo, cosmos e via iogue em séries ordenadas, razão pela qual krama é recorrente como operador de estruturação doutrinal e prática. Internet Archive


Referências citadas (links/edições)


9) Leituras complementares recomendadas (trilhas)


  1. Filologia do termo: Apte; Vācaspatyam; Śabdakalpadruma (para nuances lexicais).

  2. Śaivismo da Caxemira: Dyczkowski; Sanderson; Muller-Ortega; Silburn; Torella; Nemec.

  3. Tantrismo śākta: Padoux; Goodall; Vasudeva; (e dossiês sobre Kālīkrama em Rocher/Rosati).

  4. Nātha e Haṭhayoga: Mallinson & Singleton (Roots of Yoga); Briggs; edições críticas de Gorakṣaśataka, Amaraugha-prabodha, Khecarīvidyā. soas-repository.worktribe.com


Conclusão

Do passo à mística do tempo, krama dá nome a um princípio de ordenação que atravessa a cultura sânscrita: protege textos (recitação védica), organiza rituais (pūjā-krama), projeta soteriologias graduais (krama-mukti) e, no Tantrismo, nomeia uma escola inteira (o Krama/Kālīkrama) que transforma “sequência” em categoria metafísica e, por fim, a transcende em akrama. Na tradição Nātha, krama opera como ferramenta de didática esotérica — inscrevendo o caminho iogue numa arquitetura de séries e estágios, onde a ordem é a via e a instantaneidade (akrama) é a meta. Internet Archive


Nota sobre transliteração e convenções:Emprega-se IAST (com diacríticos) para termos sânscritos. Devanāgarī é dado quando relevante. Traduções visam o português do Brasil e mantêm, quando necessário, tecnicismos do campo.

 
 
 

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