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A Primeira Onda Histórica do Yoga – Os Vedas, Patañjali e o Aṣṭāṅga Clássico: O Núcleo Meditativo do Yoga Autêntico.

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    INatha
  • 20 de ago.
  • 5 min de leitura

Introdução

A história do yoga, enquanto disciplina filosófica, ritual e espiritual, é marcada por sucessivas ondas de sistematização que refletem tanto a riqueza da tradição védica quanto a necessidade de codificação prática em diferentes épocas. A primeira dessas ondas pode ser localizada no arco que vai dos Vedas à sistematização do Yoga Sūtra de Patañjali. Nesse percurso, observa-se uma transição da dimensão litúrgico-sacrificial (yajña) dos hinos e fórmulas védicas para a emergência de uma epistemologia e metodologia meditativa que encontrará sua expressão mais lapidar na formulação do aṣṭāṅga-yoga (अष्टाङ्गयोग) – os “oito membros” da disciplina.


A investigação acadêmica contemporânea (Flood 1996; Eliade 1954; Larson 1989; Maas 2013) reconhece que, embora práticas corporais e respiratórias tenham acompanhado o desenvolvimento do yoga, o núcleo autêntico da tradição clássica é essencialmente meditativo, sendo a quietude da mente (citta-vṛtti-nirodhaḥ) o eixo teleológico de todo o edifício. O objetivo deste ensaio é apresentar, em perspectiva histórica, filológica e hermenêutica, o processo pelo qual os Vedas e os sistemas filosóficos associados culminam na formulação de Patañjali, delineando assim o contorno daquilo que pode ser denominado a primeira onda histórica do yoga.


1. O horizonte védico: sacrifício, mantra e contemplação

Os Vedas (वेद, veda, “conhecimento”), compostos entre aproximadamente 1500–500 a.C., constituem o mais antigo repositório textual da tradição indo-ariana. No Ṛgveda já se encontram fórmulas que evocam práticas de concentração e invocação do fogo interior (tapas), bem como a disciplina do controle respiratório (prāṇa).


O conceito de ṛta (ऋत), traduzido como “ordem cósmica”, é central para a compreensão das práticas proto-yóguicas védicas. A experiência do yoga, nesse estágio, estava associada ao alinhamento do sujeito com essa ordem universal, mediado por práticas de canto (mantra), ascese (tapas) e contemplação.


Nos Upaniṣads, particularmente na Kaṭha Upaniṣad (III.10–13), encontra-se uma das formulações mais antigas da noção de yoga como controle dos sentidos e da mente:

“Quando os cinco sentidos e a mente estão em repouso, e o intelecto não se move, dizem: ‘isso é o estado supremo’. Tal é considerado yoga, firme contenção. Nesse estado, o yogin permanece desperto e não se dispersa.”


Aqui se desenha o que será consolidado séculos mais tarde: o yoga como disciplina da interioridade, um método para transcender as oscilações mentais e alcançar a liberdade (mokṣa).


2. Patañjali e o Yoga Sūtra: sistematização do núcleo meditativo

A obra Yoga Sūtra (योगसूत्र), tradicionalmente atribuída a Patañjali (século II a.C. – IV d.C., datas debatidas), constitui o texto fundador da tradição clássica. Sua concisão aforística – 195 sūtras em quatro capítulos (pāda) – cristaliza um sistema que, embora em diálogo com escolas como o Sāṃkhya, apresenta um caminho autônomo de libertação.


O célebre aforismo de abertura (I.2):


योगश्चित्तवृत्तिनिरोधः (yogaś citta-vṛtti-nirodhaḥ)“Yoga é a cessação das flutuações da mente.”


explicita o núcleo epistemológico do yoga: a prática é orientada não a benefícios externos ou meramente físicos, mas ao apaziguamento cognitivo que possibilita o reconhecimento do puruṣa (espírito) em sua pureza.


2.1 O aṣṭāṅga-yoga

No segundo capítulo do texto (Sādhana-pāda), Patañjali sistematiza os oito membros (aṣṭāṅga):


  1. yama (यम) – princípios éticos universais

  2. niyama (नियम) – observâncias e disciplinas pessoais

  3. āsana (आसन) – postura corporal estável e confortável

  4. prāṇāyāma (प्राणायाम) – regulação do sopro vital

  5. pratyāhāra (प्रत्याहार) – retração dos sentidos

  6. dhāraṇā (धारणा) – concentração

  7. dhyāna (ध्यान) – meditação

  8. samādhi (समाधि) – absorção contemplativa


O eixo teleológico é claro: enquanto yama, niyama, āsana e prāṇāyāma constituem suportes preparatórios, o verdadeiro coração da disciplina se situa nos estágios superiores (dhāraṇā–dhyāna–samādhi), reunidos sob o termo saṃyama (संयम). Assim, o yoga é essencialmente uma via meditativa de libertação, em continuidade com a tradição das Upaniṣads, mas agora com rigor sistemático.


2.2 O estatuto epistemológico do yoga clássico

Como observa Gerald Larson (1989), o yoga de Patañjali não é um mero sistema técnico, mas um “darśana” – uma visão filosófica que oferece critérios epistemológicos próprios. A autoridade textual dos Yoga Sūtra e a longa tradição de comentários – de Vyāsa (século V d.C.) a Vacaspati Miśra e Bhoja – sustentam a compreensão do yoga como ciência da mente e da libertação, não como prática de condicionamento físico.


3. Consequências metodológicas

Dessa cristalização clássica derivam duas consequências fundamentais:


  1. Critério de autenticidade: qualquer tradição que reivindique o nome yoga deve, em última instância, visar à quietude mental e ao reconhecimento do puruṣa. O núcleo não é estético, terapêutico ou atlético, mas meditativo e soteriológico.


  2. Instrumentalidade das práticas corporais e respiratórias: āsana e prāṇāyāma têm função reguladora, não como fins em si, mas como meios para preparar a mente ao dhyāna e ao samādhi.


Esse princípio separa o yoga clássico daquilo que, em épocas recentes, se configurou como “yoga postural moderno” (De Michelis 2004), em que a ênfase corporal assume primazia.


Conclusão

A chamada “primeira onda histórica do yoga” compreende o arco que vai do horizonte védico até a codificação do Yoga Sūtra de Patañjali. Nesse percurso, práticas ritualísticas, ascéticas e meditativas foram depuradas em um método que encontra no aṣṭāṅga seu emblema.


Trata-se de um yoga cuja autenticidade repousa no núcleo meditativo: o apaziguamento da mente, a disciplina da consciência e a realização de um estado de liberdade interior. Essa formulação clássica permanece, até hoje, como critério regulador do que se pode denominar yoga em sentido estrito.


A compreensão dessa primeira onda é essencial não apenas para a história do pensamento indiano, mas também para o debate contemporâneo sobre o lugar do yoga nas sociedades globais. Ela nos lembra que, apesar das múltiplas reinvenções modernas, o eixo axial do yoga autêntico continua sendo a meditação como via de libertação.


Bibliografia


  • Bronkhorst, Johannes. The Two Traditions of Meditation in Ancient India. Delhi: Motilal Banarsidass, 1993.

  • De Michelis, Elizabeth. A History of Modern Yoga: Patañjali and Western Esotericism. London: Continuum, 2004.

  • Eliade, Mircea. Yoga: Immortality and Freedom. Princeton: Princeton University Press, 1954.

  • Flood, Gavin. An Introduction to Hinduism. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

  • Larson, Gerald J., and Ram Shankar Bhattacharya. Yoga: India’s Philosophy of Meditation. Delhi: Motilal Banarsidass, 1989.

  • Maas, Philipp A. A Concise Historiography of Classical Yoga Philosophy. Vienna: Austrian Academy of Sciences Press, 2013.

  • Olivelle, Patrick (trad.). The Early Upaniṣads. Oxford: Oxford University Press, 1998.

  • Rukmani, T.S. Yogasūtrabhāṣyavivaraṇa of Śaṅkara. Delhi: Munshiram Manoharlal, 2001.

  • Samuel, Geoffrey. The Origins of Yoga and Tantra: Indic Religions to the Thirteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.

  • Whicher, Ian. The Integrity of the Yoga Darsana: A Reconsideration of Classical Yoga. Albany: SUNY Press, 1998.

 
 
 

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