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(02) Ṛta (ऋत): A Ordem Cósmica no Sanātana Dharma.

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    INatha
  • 18 de ago.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 20 de ago.



1. Introdução

O conceito de ṛta (ऋत) é central para a compreensão da cosmovisão védica e do Sanātana Dharma. Ele designa a ordem universal, a regularidade cósmica e a verdade primordial que rege o cosmos, a natureza e o comportamento humano. Muito mais que uma lei física ou social, ṛta é a manifestação da harmonia que sustenta a existência e que fundamenta todos os princípios éticos, rituais e metafísicos do pensamento indiano antigo.


No Rigveda (ऋग्वेद / ṛgveda), ṛta aparece como o eixo que organiza o universo e a ação humana: quem age em consonância com ṛta contribui para a ordem e prosperidade; quem a transgride, gera caos e desarmonia. Assim, ṛta é tanto cósmico quanto moral: sua percepção guia a conduta (dharma, धर्म) e a prática ritual (yajña, यज्ञ).


2. Etimologia e Significado

A palavra ऋत (ṛta) deriva da raiz verbal ṛ (ऋ), que significa “correr, fluir, ordenar”. O sufixo -ta indica o estado ou a qualidade de algo. Assim, ṛta significa literalmente “aquilo que corre corretamente, a regularidade, a verdade que se manifesta” (Griffith, 1896; Jamison & Brereton, 2014).

Em IAST:

  • ṛ = correr, fluir, ordenar

  • ṛta = o fluxo ordenado, a regularidade universal


No Rigveda (RV 1.25.2), encontramos a referência clássica:


“सत्यं वद। सत्यं च पथि चर।”satyaṃ vada, satyaṃ ca pathi cara“ Fala a verdade; segue o caminho da verdade (ṛta).”


Aqui, ṛta está ligado à verdade (satya, सत्य) e à retidão ética*, mostrando sua dimensão tanto cósmica quanto social.


3. Ṛta no Rigveda e nos Vedas

No período védico antigo, ṛta é fundamento da ordem cósmica, dos ciclos naturais, da harmonia planetária e do sucesso ritual. Ele é:


  1. Cosmológico: regula o nascer e pôr do Sol, as estações, os rios e a chuva.

  2. Ritualístico: o êxito dos sacrifícios (yajñas) depende da observância de ṛta.

  3. Moral e social: os humanos devem alinhar suas ações ao ṛta para manter a prosperidade e evitar o caos.


No Rigveda 10.190.2, ṛta é apresentado como a força que mantém a harmonia universal, superior mesmo aos deuses, que dependem da regularidade do ṛta para atuar. Assim, ṛta precede dharma e karma, sendo a condição de possibilidade para todas as leis divinas e humanas.


3.1. Ṛta e os deuses védicos


  • Varuṇa (वरुण): protetor de ṛta, especialmente da ordem moral e da verdade.

  • Mitra (मित्र): associado à amizade, pacto e cumprimento de deveres, também regulado por ṛta.

  • Indra (इन्द्र): como senhor da chuva e do raio, age em conformidade com ṛta para assegurar a fertilidade e a prosperidade.


Varuṇa, em particular, simboliza a justiça cósmica, punindo transgressões da ordem natural. A tríade Mitra-Varuṇa-Indra aparece constantemente como guardião do equilíbrio ṛta.


4. Ṛta, Dharma e Karma

Com o tempo, ṛta evoluiu conceitualmente para dharma (धर्म) e karma (कर्म):


  • Dharma: do sânscrito dhar (धृ) = sustentar; é a manifestação social e ética do ṛta. Enquanto ṛta é universal, dharma é contextual: o dever individual que mantém a ordem.

  • Karma: ação alinhada ou desalinhada com ṛta e dharma gera efeitos proporcionais. A lei de causa e efeito está profundamente relacionada com a manutenção do ṛta.


Assim, pode-se dizer que ṛta é o princípio universal, dharma é a aplicação social, e karma é o mecanismo de conformidade ou violação.


5. Ṛta e o Hatha Yoga / Tantra

Nos textos posteriores, como os Upaniṣads e tratados tântricos, ṛta aparece como a harmonia entre corpo, mente e cosmos, que deve ser percebida e cultivada:


  • Equilíbrio rítmico em pranayama, mantras e posturas corporais (āsanas) reflete a conformidade com ṛta.

  • Meditação e ritual buscam alinhar a consciência individual com o fluxo cósmico, experienciando ṛta diretamente.


O conceito de ṣaṭcakra (ṣaṭcakra, षट्चक्र) ou os corpos sutis (śarīra-sukṣma) também são interpretados como estruturas que funcionam melhor quando estão em harmonia com ṛta.


6. Perspectiva Filosófica

Filósofos védicos como Yāska e os autores dos Upaniṣads identificam ṛta como:


  1. Princípio ontológico: é a base do ser e do devir, similar ao conceito de logos na filosofia ocidental.

  2. Princípio epistemológico: aquilo que é verdadeiro e pode ser conhecido deve estar em conformidade com ṛta.

  3. Princípio ético: toda ação ética humana depende do reconhecimento da ordem cósmica.


No Maitrāyaṇīya Upaniṣad (2.1), ṛta é correlacionado com atman (आत्मन्) e brahman (ब्रह्मन्), reforçando a visão de que a verdade cósmica e a verdade interior são inseparáveis.


7. Ṛta, Sociedade e Política

Na Índia védica, ṛta também informava a estrutura política e judicial:


  • O rei (rāja) deve governar em conformidade com ṛta, garantindo justiça e harmonia social.

  • As leis e punições eram avaliadas com base na sua adequação à ordem universal, não apenas à convenção humana.


O conceito evoluiu para dharma-śāstra (धर्मशास्त्र) e influenciou profundamente textos como o Manu Smṛti, que trata da regulação social e ética segundo os princípios de ṛta e dharma.


8. Ṛta e o Universo Natural

O conceito de ṛta também é cientificamente observável na regularidade dos ciclos naturais: estações, crescimento vegetal, movimentos planetários. Na cosmovisão védica:


  • O sol e a lua, os rios e as chuvas, todos seguem ṛta.

  • A desarmonia na ação humana repercute na desarmonia da natureza, uma visão antecipatória do que hoje chamaríamos ecologia cósmica.


9. Conclusão

ṛta (ऋत) é o fundamento da visão védica de ordem, verdade e regularidade. Ele transcende a cosmologia, permeia a ética, ritual, política e a vida cotidiana, sendo o princípio unificador do cosmos e da ação humana. Seu legado filosófico se manifesta em dharma, karma, yoga e toda a tradição do Sanātana Dharma, fornecendo um paradigma de harmonia universal e alinhamento com a verdade.


Bibliografia Selecionada


  1. Griffith, Ralph T.H. The Hymns of the Rigveda. London: E.J. Lazarus & Co., 1896.

  2. Jamison, Stephanie W.; Brereton, Joel P. The Rigveda: The Earliest Religious Poetry of India. Oxford University Press, 2014.

  3. Flood, Gavin. An Introduction to Hinduism. Cambridge University Press, 1996.

  4. Doniger, Wendy. The Rig Veda: An Anthology. Penguin Classics, 1981.

  5. Macdonell, Arthur A. Vedic Mythology. Motilal Banarsidass, 1997.

  6. Olivelle, Patrick. The Samhitas: Rituals and Vedic Literature. Oxford University Press, 2007.

  7. Müller, Friedrich Max. Sacred Books of the East: The Upanishads. Oxford University Press, 1884.

  8. Knipe, David M. Vedic Voices: Intimate Narratives of a Living Andhra Tradition. Oxford University Press, 2015.

 

 
 
 

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