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(03) A Relação da Lua e do Sol com Ṛta (ऋत): A Ordem Cósmica na Sanātana Dharma.

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    INatha
  • 18 de ago.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 20 de ago.


Introdução

O conceito de Ṛta (ऋत, ṛta), fundamental nos Vedas, designa a Ordem Cósmica que sustenta o equilíbrio do universo, tanto no plano físico quanto no plano moral e espiritual. Trata-se de um princípio regulador que articula a relação entre o cosmos (viśva), a natureza (prakṛti), a vida humana (puruṣa) e o transcendente (brahman).


O Sol (Sūrya, सूर्य) e a Lua (Candra, चन्द्र ou Soma, सोम) desempenham papel central na manifestação desse princípio, não apenas como astros visíveis, mas como símbolos arquetípicos e divindades cuja regularidade e função iluminam a dinâmica de Ṛta.

Este ensaio busca analisar em profundidade a relação entre Sol, Lua e Ṛta na tradição da Sanātana Dharma, integrando aspectos cosmológicos, rituais, míticos e filosóficos, com apoio filológico e referências acadêmicas consistentes.


1. Ṛta como fundamento cósmico

Nos Ṛgveda-samhitā (ऋग्वेद संहिता), Ṛta aparece como o princípio da ordem universal, sustentado e preservado pelos deuses, especialmente Varuṇa e Mitra (RV 1.23.5; 5.63.7). Ṛta não é apenas a ordem física da natureza, mas também a lei moral, o caminho da verdade (satya, सत्य), e a regularidade que permite a vida cósmica e social.


Segundo Jan Gonda (1966, Ancient Indian Kingship from the Religious Point of View), Ṛta é anterior ao conceito de dharma, sendo o protótipo védico do que mais tarde se tornará a lei moral e cósmica do hinduísmo.


A manifestação do Sol e da Lua como astros regulares e previsíveis é, na experiência védica, a prova sensível e imediata de Ṛta: a alternância dia-noite, as fases lunares, os solstícios e equinócios são percebidos como a dança cósmica da ordem.


2. O Sol (Sūrya) como manifestação de Ṛta


2.1. Sūrya no Ṛgveda

O Sol (Sūrya, सूर्य) é descrito como “o olho dos deuses” (devasya cakṣus, RV 1.115.1), testemunha universal que tudo vê e cuja luz manifesta a ordem do Ṛta. Seu percurso diário simboliza o cumprimento perfeito da lei cósmica.

RV 1.50.10 afirma:“ud u ṣya suptān amimīta sūryo ’rvāñcāṁ jyotiṣā darśatam icchamānaḥ”“O Sol desperta os que dormem, desejando alcançar a visão do que é belo com sua luz.”

Esse despertar é a própria renovação do Ṛta, pois a cada manhã a luz da verdade afasta as trevas da desordem (anṛta).


2.2. Mitologia solar e Ṛta

Sūrya é associado aos Āditya-s, filhos de Aditi, deusa da infinitude e mãe de Ṛta. Varuṇa, Mitra e Aryaman, também Āditya-s, são guardiões da ordem cósmica, e o Sol é o veículo visível dessa vigilância.

No Atharvaveda (AV 13.2.1), o Sol é descrito como aquele que “mantém o ṛta e dissolve o anṛta”.


2.3. Sol e calendário védico

O movimento solar regula os solstícios (ayana) e os equinócios (viṣuva), marcando os rituais de transição (saṁkrānti). A ordenação temporal derivada do Sol é expressão direta de Ṛta, estabelecendo a possibilidade de yajña (sacrifício) no tempo correto (kāla).


3. A Lua (Candra/Soma) como manifestação de Ṛta


3.1. Candra e Soma nos Vedas

A Lua tem dupla identidade:


  • Candra (चन्द्र) – o astro físico, associado ao frescor e à fertilidade.

  • Soma (सोम) – a divindade e a planta sacramental, oferenda central dos rituais védicos.


No Ṛgveda (RV 9.2.10), Soma é exaltado como a própria essência da ordem cósmica:“ṛtenābhi sam eti somo”“Pelo Ṛta, Soma se aproxima.”

A Lua, em suas fases, regula o mês védico (māsa) e os rituais lunares, como o Ekādaśī e o Pūrṇimā yajña. A alternância crescente e minguante da Lua é vista como o ciclo da renovação cósmica, testemunho do ritmo de Ṛta.


3.2. Lua e o ciclo dos deuses e homens

No Chāndogya Upaniṣad (5.10.1-2), a Lua é descrita como a morada dos ancestrais (pitṛ-loka), lugar de passagem das almas que retornam ao ciclo de renascimentos. Assim, a Lua está ligada a Ṛta como reguladora da transmigração (saṁsāra).


3.3. Soma e a imortalidade

Soma é chamado “rei do Ṛta” (RV 9.42.2). O consumo ritual da bebida soma é visto como um ato de integração ao Ṛta, pois confere ao sacrificante a experiência da ordem divina, aproximando-o dos deuses e da imortalidade (amṛta).


4. Sol e Lua em complementaridade no Ṛta


4.1. Dualidade e complementaridade

O Sol e a Lua são polaridades que se equilibram em Ṛta:


  • O Sol representa o princípio masculino, ativo, consciente, solar (puruṣa).

  • A Lua representa o princípio feminino, receptivo, cíclico, lunar (prakṛti).


Essa complementaridade se reflete no calendário védico, que é luni-solar, unindo os dois ritmos para garantir a precisão dos rituais (ṛtukāla).


4.2. Yajña e o equilíbrio solar-lunar

Nos Brāhmaṇa-s, o ritual é descrito como sustentado tanto pelo Sol quanto pela Lua, cuja alternância garante o movimento vital. O Śatapatha Brāhmaṇa (2.1.2.13) afirma que o sacrifício é eficaz porque está “de acordo com Ṛta”, isto é, realizado no tempo exato definido pelo movimento solar-lunar.


4.3. Equilíbrio metafísico

O equilíbrio entre Sol e Lua no Ṛta é também espiritual: no microcosmo humano, correspondem às correntes de energia iḍā (lunar) e piṅgalā (solar), cujo equilíbrio no suṣumṇā nāḍī conduz à experiência do absoluto (samādhi). Essa relação é explicitada mais tarde nos textos do Haṭha Yoga Pradīpikā (2.4-6).


5. Ṛta, Sol e Lua na tradição posterior

Com a evolução do pensamento védico para o hinduísmo clássico:


  • Ṛta se torna Dharma (धर्म), a lei universal e moral.

  • O Sol e a Lua permanecem símbolos centrais, agora associados a deidades específicas: Sūrya Nārāyaṇa e Chandra Deva.

  • O calendário pañcāṅga (पञ्चाङ्ग) integra Sol e Lua para definir datas auspiciosas (muhūrta), assegurando que a vida social e espiritual permaneça em consonância com o Ṛta.


No Bhagavadgītā (10.21), Kṛṣṇa declara:“ādityānām ahaṁ viṣṇuḥ jyotiṣāṁ ravir aṁśumān”“Dos Āditya-s, eu sou Viṣṇu; entre as luzes, eu sou o Sol radiante.”

E em (10.21):“nakṣatrāṇām ahaṁ śaśī”“Entre as constelações, eu sou a Lua.”

Esses versos mostram que Sol e Lua são expressões supremas da divindade, e sua regularidade no céu é a garantia de Ṛta.


Conclusão

O Sol e a Lua, em sua relação com Ṛta, são mais que corpos celestes: são manifestações vivas da ordem cósmica. O Sol, com sua luz inabalável, garante a continuidade do dia, do ano e da percepção da verdade. A Lua, com sua mutabilidade cíclica, regula os ritmos da vida, da fertilidade, do sacrifício e da própria transmigração.

Unidos, Sol e Lua refletem a harmonia do Ṛta, que não é apenas lei física, mas também princípio espiritual e moral que sustenta o universo. A regularidade desses astros visíveis é a expressão sensível de uma ordem invisível, eterna, que fundamenta a Sanātana Dharma.


Bibliografia


  • Ṛgveda Saṁhitā. Ed. Ralph T.H. Griffith, 1896; trad. versão em sânscrito de M. Müller.

  • Atharvaveda Saṁhitā. Ed. Maurice Bloomfield, 1897.

  • Śatapatha Brāhmaṇa. Trad. Julius Eggeling, Sacred Books of the East.

  • Chāndogya Upaniṣad, ed. Patrick Olivelle, Oxford, 1996.

  • Bhagavadgītā, ed. J.A.B. van Buitenen, 1981.

  • Gonda, Jan. Ancient Indian Kingship from the Religious Point of View. Leiden: Brill, 1966.

  • Keith, A.B. The Religion and Philosophy of the Veda and Upanishads. Harvard, 1925.

  • Macdonell, Arthur A. Vedic Mythology. Strassburg, 1897.

  • Renou, Louis. Vedic India. Paris, 1957.

  • Staal, Frits. Agni: The Vedic Ritual of the Fire Altar. Berkeley: University of California Press, 1983.

  • Eliade, Mircea. Yoga: Immortality and Freedom. Princeton, 1958.

 
 
 

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