top of page

(04) Ṛta–Sūrya–Candra: Ordem Cósmica, Calendário Védico, Cosmologia Purânica e Yoga Tântrico.

  • Foto do escritor: INatha
    INatha
  • 18 de ago.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 20 de ago.



Introdução          

A noção de Ṛta (ऋत, ṛta) ocupa um lugar central no pensamento védico, constituindo a matriz filosófica que sustenta a relação entre cosmos, ritual, ética e espiritualidade. Definida como a Ordem Cósmica, o princípio que garante a regularidade do movimento dos astros e a inteligibilidade da experiência humana, ṛta articula o ritmo universal com a conduta individual. No âmbito da tradição védica e purânica, os dois luminares – Sūrya (सूर्य, sūrya), o Sol, e Candra (चन्द्र, candra), a Lua – são compreendidos como manifestações privilegiadas de ṛta.


Essa articulação manifesta-se em três grandes níveis:


  1. O calendário védico, estruturado pela interação entre Sol e Lua e orientado pela noção de ṛta como regulador dos rituais (yajña).

  2. A cosmologia purânica, na qual Sol e Lua são personificações divinas que circulam em órbitas prescritas pela ordem universal.

  3. O yoga tântrico, que interpreta Sol e Lua como princípios psicoespirituais complementares, vinculados ao fluxo da energia vital (prāṇa) e à ascese interior.


Este ensaio tem por objetivo apresentar uma análise acadêmica ampla, sóbria e fundamentada desses três aspectos, enfatizando sua unidade orgânica sob a categoria de ṛta.


1. Ṛta no Ṛgveda e a regularidade dos luminares

No Ṛgveda, ṛta é mencionado como a lei que sustenta o cosmos e a sociedade, fundamento da verdade (satya) e do sacrifício (yajña). Os hinos descrevem ṛta como o princípio que rege a aurora (uṣas), o curso do Sol e da Lua, as estações (ṛtu) e a alternância do dia e da noite:


  • ṚV 1.123.9: sūrya ātmā jagatas tasthuṣaś ca – “o Sol é a alma do que se move e do que permanece”.

  • ṚV 10.190.1: ṛtam ca satyam cābhīddhāt tapasodhyajāyata – “de tapas nasceu ṛta e satya”.


Assim, o Sol e a Lua não são apenas astros físicos, mas também expressões da ordem universal. O movimento regular de ambos sustenta a medida do tempo, sendo ṛta a inteligibilidade que possibilita o cálculo do calendário e a realização do rito.


2. O calendário védico: Sol, Lua e Ṛta

O calendário védico (pañcāṅga, पञ्चाङ्ग), literalmente “cinco membros”, é estruturado pela relação de Sol e Lua em conformidade com ṛta. Seus componentes principais são:


  1. Tithi (तिथि, tithi) – o dia lunar, unidade fundamental do calendário, definido pela diferença angular entre Sol e Lua (12°). Há 30 tithis em cada mês.

  2. Nakṣatra (नक्षत्र, nakṣatra) – as 27 (ou 28) mansões lunares, que servem de medida sideral para o percurso da Lua, organizando o tempo ritual.

  3. Vāra (वार, vāra) – o ciclo semanal, derivado da associação dos sete grahas.

  4. Yoga (योग, yoga) – a soma das longitudes de Sol e Lua dividida em 27 partes.

  5. Karaṇa (करण, karaṇa) – metade de um tithi.


Essa estruturação não é meramente astronômica: ela encarna ṛta enquanto ordem temporal-sacralizada, determinando os momentos propícios (muhūrta, muhūrta) para yajñas, iniciações e observâncias (vrata).


No plano ritual, Sol e Lua marcam ritmos distintos:


  • O ano solar (saura-varṣa) regula os solstícios (uttarāyaṇa, dakṣiṇāyana), vinculados ao movimento de Sūrya e às transições sazonais (ṛtu).

  • O ano lunar (cāndra-varṣa) regula as festividades ligadas à Lua, como Ekādaśī, Śivarātri e Pūrṇimā.


    A harmonia entre ambos é garantida pela intercalação (adhikamāsa), assegurando que o calendário mantenha conformidade com ṛta.


3. Cosmologia purânica: Sūrya e Candra como deuses da ordem

Nos Purāṇas, especialmente no Viṣṇu Purāṇa, Bhāgavata Purāṇa e Matsya Purāṇa, a cosmologia é descrita de modo teológico. O Sol é representado como o “olho de Viṣṇu” (cakṣur devaḥ), e a Lua como o “reservatório do soma” (soma-dhārin).


  • Sūrya é conduzido em sua quadriga por sete cavalos (as sete cores ou raios, saptāśva), e seu movimento diário circunda o monte Meru, estruturando o dia e as estações.

  • Candra percorre os nakṣatras em um ciclo de 27 dias, nutrindo os deuses e os homens com o néctar do soma.


A regularidade de suas órbitas é entendida como expressão direta de ṛta. A cosmologia purânica afirma que a obediência dos astros a suas trajetórias é o reflexo da lei universal, e sua eventual transgressão (como eclipses, atribuídos a Rāhu e Ketu) é interpretada como perturbação momentânea da ordem.


4. O Yoga Tântrico: Sol, Lua e Ṛta interior

No yoga tântrico – especialmente nos textos da Haṭhayoga-pradīpikā e da Śiva-saṃhitā – Sol e Lua deixam de ser apenas astros cósmicos e passam a simbolizar energias internas.


  • O ida-nāḍī (इडानाड़ी, iḍā-nāḍī) é associado à Lua (candra), representando o princípio frio, receptivo, feminino e mental.

  • O piṅgalā-nāḍī (पिङ्गलानाड़ी, piṅgalā-nāḍī) é associado ao Sol (sūrya), representando o princípio quente, ativo, masculino e vital.

  • O suṣumṇā-nāḍī (सुषुम्नानाड़ी, suṣumṇā-nāḍī), o canal central, é o eixo da integração dos dois, lugar da ascensão da kuṇḍalinī.


Assim, a prática do yoga tântrico busca restabelecer no corpo a mesma harmonia que ṛta sustenta no cosmos: a unificação de Sol e Lua em um eixo central de consciência.

O controle da respiração (prāṇāyāma), em particular a técnica de sūrya-bhedana e candra-bhedana, é um modo de alinhar a energia vital com o ritmo cósmico. O próprio haṭha (हठ, haṭha) é tradicionalmente interpretado como a união de ha (Sol) e ṭha (Lua).

Dessa maneira, o yoga tântrico transfigura a cosmologia em psicocosmologia, operando uma interiorização do ṛta como ordem do corpo sutil (liṅga-śarīra).


5. Convergências: Ṛta como eixo integrador


A relação entre ṛta, Sol e Lua pode ser sintetizada em três níveis:


  1. Calendário védico – ṛta assegura a possibilidade do cálculo temporal, da harmonia entre Sol e Lua e da efetividade do yajña.

  2. Cosmologia purânica – ṛta garante a regularidade da órbita dos luminares e sua função de nutrir e sustentar a vida.

  3. Yoga tântrico – ṛta é interiorizado como equilíbrio das energias solares e lunares no corpo sutil, conduzindo à liberação (mokṣa).


Em todos os casos, ṛta não é mera regularidade física, mas ordem ontológica e espiritual, onde cosmos, rito e ascese convergem.


Conclusão

A tríade Ṛta–Sol–Lua constitui uma das chaves interpretativas mais abrangentes da tradição hindu. Do ponto de vista ritual, estabelece o calendário que ancora a vida religiosa; do ponto de vista cosmológico, assegura a inteligibilidade do universo; do ponto de vista ióguico, orienta a disciplina interna da energia vital.

Assim, ṛta mostra-se como princípio unificador que conecta o macrocosmo (ṛta cósmico), o mesocosmo (ṛta social e ritual) e o microcosmo (ṛta do corpo sutil). Ao garantir a consonância entre Sūrya e Candra, ṛta não apenas sustenta a ordem universal, mas também abre caminho para a experiência de transcendência no yoga tântrico.


Bibliografia


  • Bhattacharya, Narendra Nath. History of the Tantric Religion. Delhi: Manohar, 1999.

  • Bryant, Edwin. The Yoga Sūtras of Patañjali: A New Edition, Translation, and Commentary. New York: North Point, 2009.

  • Feuerstein, Georg. The Yoga Tradition: Its History, Literature, Philosophy and Practice. Prescott: Hohm Press, 2008.

  • Gonda, Jan. Vedic Ritual: The Non-Solemn Rites. Leiden: Brill, 1980.

  • Kane, P. V. History of Dharmaśāstra, Vol. V. Poona: Bhandarkar Oriental Research Institute, 1974.

  • Pingree, David. “Astronomy and Astrology in India and Iran.” Isis 54, no. 2 (1963): 229–246.

  • Rocher, Ludo. The Purāṇas. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1986.

  • Staal, Frits. Agni: The Vedic Ritual of the Fire Altar. Berkeley: Asian Humanities Press, 1983.

  • White, David Gordon. The Alchemical Body: Siddha Traditions in Medieval India. Chicago: University of Chicago Press, 1996.

  • Zimmer, Heinrich. Philosophies of India. Princeton: Princeton University Press, 1974.

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo

Comentários

Avaliado com 0 de 5 estrelas.
Ainda sem avaliações

Adicione uma avaliação
bottom of page