(05) Ṛta–Sūrya–Candra no Tantrismo: Fundamentos, fisiologia sutil e a união haṭha (हठ) no yoga tântrico.
- INatha

- 18 de ago.
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Atualizado: 20 de ago.
Resumo
Este ensaio examina, em perspectiva histórico-filológica e fenomenológica, a relação entre Ṛta (ऋत, ṛta), Sūrya (सूर्य, sūrya) e Candra (चन्द्र, candra) no tantrismo indiano, com ênfase especial no yoga tântrico e nos textos clássicos do haṭhayoga (हठयोग). Parto do conceito védico de ṛta como ordem cósmica para mostrar sua interiorização ritual e psicossomática nas tradições śaivas e śāktas; exponho a simbologia solar-lunar na fisiologia sutil (nāḍī-cakra), a doutrina da inversão (viparītakaraṇī), a economia de bindu (बिन्दु) e amṛta (अमृत), e as diferentes interpretações de haṭha como “força” e como união de ha = Sol e ṭha = Lua.
Concluo sugerindo que a prática tântrico-haṭha busca restaurar, intensificar e estabilizar a ordem (ṛta) no microcosmo (piṇḍa) por meio da conjunção Sūrya–Candra no corpo sutil, culminando na emergência da suṣumṇā (सुषुम्णा) e na ascensão de kuṇḍalinī (कुण्डलिनी).
1) De Ṛgveda a Tantra: a ordem (ऋत) que se faz corpo
No corpus védico, ऋत / ṛta designa a ordem e regularidade que regem cosmos, deuses, fenômenos naturais e conduta ritual-ética; está associada à verdade (satya), à regularidade dos luminares e ao cumprimento de vrata (observâncias). Em síntese, ṛta é a inteligibilidade do real e sua normatividade. Wikipedia
O tantrismo (sobretudo as escolas Śaiva e Śākta) interioriza essa ordem: o que no Veda é macro-cosmo, no Tantra é corpo-templo (deha-mandira). Assim, Sol e Lua não apenas regem o tempo; tornam-se funções respiratórias, canais energéticos, centros cranianos e poderes (śakti). A máxima kaula “piṇḍe yathā brahmāṇḍe” (no corpo como no universo) resume o gesto tântrico: ritualizar a vida e corporalizar o rito.
2) Sūrya–Candra na fisiologia sutil tântrico-iogue
A fisiologia tântrica descreve três canais principais: iḍā (इडा, esquerda, “lunar”), piṅgalā (पिङ्गला, direita, “solar”) e suṣumṇā (central). A prática busca equilibrar iḍā e piṅgalā para que prāṇa entre em suṣumṇā, condição para kuṇḍalinī-utthāna. Textos clássicos como a Śiva-Saṁhitā apresentam sistematicamente essa rede de nāḍīs e a centralidade de suṣumṇā. holybooks.com
Na hermenêutica tântrica, Candra governa a refrigeração, repouso e nectar (amṛta); Sūrya, o calor metabólico, a combustão e o tempo que escoa. A regulação respiratória (prāṇāyāma), os bandhas (fechos) e as mudrās organizam a economia solar-lunar do corpo, preparando a igualação (samatā) dos fluxos respiratórios (svarodaya) e a suspensão no eixo (madhya) da suṣumṇā.
3) Haṭha (हठ): força, técnica e a semântica solar-lunar
Historicamente, haṭha significa primeiro um conjunto de métodos “forçosos” (bandha-mudrā-kumbhaka) para forçar prāṇa a entrar na suṣumṇā e estancar a dissipação de bindu/amṛta, conforme textos basilares como o Amṛtasiddhi (séc. XI–XII). A leitura etimológica que identifica ha = Sol (Sūrya) e ṭha = Lua (Candra) surge explicitamente em textos posteriores, como o Yogabīja, e torna-se popular na tradição. A pesquisa filológica recente esclarece essa estratigrafia de sentidos. astrojyoti.com
A Haṭhayogapradīpikā de Svātmārāma sistematiza as mudrās e os kumbhakas, articulando a meta de rājayoga (laya/nirodha da mente) com haṭha-sādhana. A doutrina solar-lunar aparece também em tratados correlatos (p.ex., Vivekamārtaṇḍa, Gheraṇḍa-Saṁhitā) ao explicar práticas de inversão (viparītakaraṇī) e o manejo do “Sol” no umbigo e “Lua” no palato – imagética que condensa fisiologia e cosmologia. ScribdYogasala
Nota textual: A famosa fórmula “ha = sūrya, ṭha = candra” é tardia e exegética (não originária). Ainda assim, tornou-se pedagogicamente nuclear para ensinar que o objetivo de haṭhayoga é unir e estabilizar os polos solar e lunar no caminho central.
4) A “inversão” (विपरीतकरणी) e a economia de amṛta (अमृत)
Diversos textos descrevem a viparītakaraṇī-mudrā: “colocar o Sol acima e a Lua abaixo”, contrariando o fluxo ordinário em que o calor “solar” evapora o amṛta “lunar” do palato (bindu). Trata-se de uma técnica de reversão do “tempo fisiológico” para preservar o néctar e protelar a entropia do corpo, uma imagem tântrica da reordenação (ṛta) do microcosmo. Scribd
5) Sūrya–Candra–Vahni (fogo): o tríplice olho da Deusa
No Śrīvidyā (Śākta Tantra), Tripurasundarī é frequentemente descrita com três olhos – Sol, Lua e Fogo (sūrya–candra–vahni). A tríade aparece nas nyāsas, no esquema kāmakalā (bindu–ardhacandra–visarga) e na leitura mantra-tattva do corpo: a Deusa sincroniza os ritmos solar-lunares e transfigura o fogo interno. Essa doutrina tinge práticas de mudrā-mantra-dhyāna no haṭha tântrico. bhagavadgitausa.com
6) Ritos do tempo: tithi, nityās e a gramática do calendário
A temporalidade tântrica organiza-se por tithi (dias lunares) e nakṣatra, mapeando o ciclo lunar às nityā-devīs (no Śrīvidyā) e às kalās do Sol e da Lua; pratica-se japa, homa e upāsanā em janelas propícias (śubha-muhūrta) para alinhar a interioridade à ordem celeste. Tais rituais se articulam às práticas psicofísicas do haṭha, reforçando a coincidência entre ṛta cósmico e ṛta corporal.
7) A síntese iogue: restaurar ṛta no corpo sutil
No plano operativo, o yoga tântrico realiza ṛta quando:
Equilibra iḍā (lunar) e piṅgalā (solar) por prāṇāyāma, bandha e mudrā, até a emergência de suṣumṇā. holybooks.com
Inverte o gasto de amṛta e estabiliza o “polo lunar” (refrigeração/néctar) contra o “polo solar” (combustão/tempo), por técnicas como viparītakaraṇī. Scribd
Integra a tríade Sol–Lua–Fogo em contemplação mantra-tântrica, convertendo calor, resfriamento e luz em um único olho (ekanetra) de consciência. bhagavadgitausa.com
Transmuta a força haṭha (como esforço técnico) em samādhi (rājayoga), meta explicitada por Svātmārāma. (Ver a orientação programática da Haṭhayogapradīpikā consolidando haṭha como meio para rājayoga.) Internet Archive
Nessa chave, “unir Sol e Lua” não é mera metáfora: é ortopedia da ordem no organismo sutil, uma liturgia do corpo respirante na qual a lei (ṛta) torna-se experiência.
8) Excerto de vocabulário (IAST/Devanāgarī)
ṛta / ऋत – ordem cósmica, regularidade verdadeira
sūrya / सूर्य – Sol; candra / चन्द्र – Lua; vahni / वह्नि – fogo
iḍā / इडा (lunar), piṅgalā / पिङ्गला (solar), suṣumṇā / सुषुम्णा (canal central)
haṭha / हठ – técnicas “forçosas”; (leitura exegética: ha = Sol, ṭha = Lua) astrojyoti.com
viparītakaraṇī / विपरीतकरणी – “inversão” Sol-Lua para preservação de amṛta Scribd
bindu / बिन्दु – “gota” seminal/subtil; amṛta / अमृत – néctar
bandha / बन्ध – fechos; mudrā / मुद्रा – selos gestos-psicofísicos
Conclusão
A tradição tântrico-haṭha reinterpreta ṛta como engenharia do corpo sutil: Sūrya e Candra, que ordenam o firmamento e o calendário, tornam-se dinâmicas polares de prāṇa reguladas por técnica, rito e contemplação. A “união de haṭha” não é apenas ontologia simbólica; é tecnologia soteriológica pela qual o yogin reordena a própria vitalidade, retificando o tempo interno, estabilizando a consciência e reconduzindo a experiência ao eixo (madhya) onde ṛta se reconhece em si.
Bibliografia essencial (seleção)
Estudos e edições modernas
Birch, Jason. “The Meaning of Haṭha in Early Haṭhayoga.” (preprint). Discussão filológica do termo haṭha e suas primeiras ocorrências; analisa a etimologia tardia ha = sūrya, ṭha = candra. astrojyoti.com
Mallinson, James & Singleton, Mark. Roots of Yoga. London: Penguin, 2017. Antologia crítica de textos sobre yoga (inclui haṭha, kuṇḍalinī, nāḍī, etc.). hyp.soas.ac.uksoas-repository.worktribe.com
Mallinson, James (ed.). The Shiva Samhita: A Critical Edition and an English Translation. Woodstock, NY: YogaVidya, 2011. Edição e tradução de um tratado clássico com fisiologia sutil e prática. holybooks.com
Mallinson, James & Szántó, Péter-Daniel. The Amṛtasiddhi and Amṛtasiddhimūla: The Earliest Texts of the Haṭhayoga Tradition. EFEO/Princeton, 2021. (Sobre bindu/amṛta e técnicas “forçosas”.) Biblioteca da Sabedoria
Burley, Mikel. Haṭha-Yoga: Its Context, Theory and Practice. Delhi: Motilal Banarsidass, 2000. (Inclui discussão de viparītakaraṇī e da imagética Sol–Lua.) Scribd
Woodroffe, John (Arthur Avalon). The Serpent Power. (clássico de referência sobre Śrīvidyā/kuṇḍalinī, com a tríade Sol–Lua–Fogo da Deusa). bhagavadgitausa.com
Padoux, André. Vāc: The Concept of the Word in Selected Hindu Tantras. Albany: SUNY Press, 1990. (Sobre mantra, kāmakalā e interiorização do cosmos.)
Dyczkowski, Mark S. G. The Doctrine of Vibration: An Analysis of the Doctrines and Practices of Kashmir Shaivism. Delhi: SUNY, 1987.
Brooks, Douglas. The Secret of the Three Cities: An Introduction to Hindu Śākta Tantrism. Chicago: University of Chicago Press, 1990.
Textos primários e correlatos (mencione edições/traduções usuais)
Haṭhayogapradīpikā (Svātmārāma). Edições/trads. recomendadas: Mallinson (Yogavidyā); Akers; versões críticas. (Sobre bandha-mudrā, rājayoga, suṣumṇā). Internet Archive
Śiva-Saṁhitā. (Fisiologia sutil, 84 āsanas, prāṇāyāma). holybooks.com
Gheraṇḍa-Saṁhitā. (Saptasādhanā, viparītakaraṇī, ṣaṭkarma). Yogasala
Vivekamārtaṇḍa. (Trad. em Burley; Sol no umbigo, Lua no palato). Scribd
Yogabīja. (Formulação clássica de ha = sūrya, ṭha = candra). (Ver Birch para referências e paralelos). astrojyoti.com
Amṛtasiddhi. (Economia de bindu/amṛta e kuṇḍalinī). Biblioteca da Sabedoria
Vijñānabhairava, Tantrāloka (Abhinavagupta), Yoginī-hṛdaya (Śrīvidyā), Śāradā-tilaka (mantra-tattva, nāḍī-cakra).
Conceito védico de Ṛta (para o pano de fundo)
Gonda, Jan. Estudos clássicos sobre ṛta, satya, dharma e a ordem védica. (ver, p.ex., Indologica, referências reunidas). asiainstitutetorino.it
Verbete “Ṛta”. Sínteses recentes do conceito e seu lugar na religião védica. Wikipedia
Apêndice: Dois micro-“diagramas” conceituais úteis
A) Do cosmos ao corpo (ṛta → sādhana)Ritmo solar-lunar (काल / tithi, nakṣatra) → Rito (mantra–homa–nyāsa) → Respiração (svara) → Nāḍī-śodhana (iḍā/piṅgalā) → Samatā (igualação dos fluxos) → Suṣumṇā (madhya) → Laya/Rājayoga.
B) Semântica de haṭha (estratigrafia)haṭha (força, técnica) → bandha–mudrā–kumbhaka (Amṛtasiddhi, HYP) → economia de bindu/amṛta → exegese tardia: ha = sūrya, ṭha = candra (Yogabīja) → didática contemporânea (união Sol–Lua).


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