Ārambha (आरम्भ) e o Mauna-Ārambha: Etimologia, Filosofia e Prática no Ekādaśa Krama.
- INatha

- 13 de ago.
- 5 min de leitura
Atualizado: 14 de ago.
O termo sânscrito ārambha (देवनागरी: आरम्भ; IAST: ārambha) ocupa lugar central em múltiplos campos do pensamento e da prática no Sanātana Dharma, desde a ritualística védica até as formulações filosóficas clássicas e as metodologias iogue-tântricas. Traduzido geralmente como “começo”, “início” ou “empreendimento”, ārambha não se limita a indicar um ponto inicial no tempo: ele qualifica a deflagração consciente de um processo, o ato de “tomar em mãos” algo com intenção deliberada. Na tradição iogue, especialmente no Haṭha-yoga e no Laya-yoga cultivados pelo Nātha-sampradāya, o vocábulo assume um valor técnico preciso, nomeando a primeira de quatro fases (avasthā) do percurso de interiorização pelo som sutil (nāda).
É neste sentido técnico-prático que ārambha surge no Ekādaśa Krama, o método em 11 partes do INatha, como componente de mauna-ārambha (मौनारम्भ, “início do silêncio”), etapa inaugural em que se estabelece a base de silêncio e atenção necessária para o avanço nas fases seguintes da prática. Este ensaio examina o termo ārambha em sua etimologia, usos amplos e técnicos, presença em escolas filosóficas e textos iogues, com atenção especial à sua função no contexto do mauna-ārambha.
1. Etimologia e morfologia
A origem de ārambha remonta à raiz verbal √rabh, que significa “agarrar, tomar, começar”. Com a prefixação ā-, intensifica-se o sentido: “tomar plenamente”, “empreender de modo deliberado”. O substantivo ārambha, portanto, denota o início de algo que é assumido com decisão.
Nos dicionários clássicos de sânscrito (Monier-Williams, Apte), o termo é registrado com significados que vão de “começo” e “abertura” até “tentativa, empreendimento, esforço inicial”. Diferencia-se de termos correlatos como ārambhaṇa (“ato de começar; suporte”), que aparece, por exemplo, no Chāndogya Upaniṣad (6.1.4) na expressão vāc-ārambhaṇa, mas cuja nuance semântica é distinta.
Tradução funcional para o português: começo, início deliberado, empreendimento.
2. Usos no Sanātana Dharma
2.1. Semântica comum e ritual
Em textos rituais e na linguagem cotidiana da literatura sânscrita, ārambha designa o início de um ato formal: karmārambha (começo de um rito), gṛhārambha (início de construção), maṅgalārambha (abertura auspiciosa). Entre os saṃskāras tradicionais, vidyā-ārambha (विद्यारम्भ) é a cerimônia que marca o início do aprendizado formal, analisada em detalhe por P. V. Kane na History of Dharmaśāstra.
2.2. Filosofia clássica: o ārambhavāda
Nas escolas Nyāya e Vaiśeṣika, o termo aparece na doutrina conhecida como ārambhavāda (“teoria do começo”), também chamada asatkāryavāda: o efeito não preexiste à causa, mas é um novo começo produzido por ela. Esse conceito se opõe ao satkāryavāda do Sāṃkhya, segundo o qual o efeito já existe potencialmente na causa. O ārambhavāda marcou o pensamento lógico e metafísico indiano e é discutido em manuais e compêndios filosóficos tradicionais e contemporâneos.
3. Ārambha no Haṭha/Laya-yoga
3.1. As quatro fases (avasthā)
No Haṭha-yoga e no Laya-yoga, especialmente nas tradições Nātha, ārambha é a primeira de quatro fases do percurso interno pelo som sutil (nāda), seguidas de ghaṭa, paricaya e niṣpatti. Essa quadripartição está atestada em textos como a Hāṭhayogapradīpikā (4.69–4.77) e a Yogatattva Upaniṣad, onde cada fase é caracterizada por sinais internos específicos e pela superação gradual de bloqueios energéticos (granthi).
A ārambhāvasthā (आरम्भावस्था) corresponde ao momento em que o brahmā-granthi é rompido e surgem as primeiras percepções do nāda, acompanhadas de estabilidade mental e efeitos fisiológicos benéficos. Essa etapa marca o início da absorção (laya) e a preparação para integrações mais profundas.
3.2. Tradição Nātha e Siddha-Siddhānta
No Nātha-sampradāya, a ārambhāvasthā é entendida como a deflagração da transformação interna. Embora o Siddha-Siddhānta-Paddhati (atribuído a Gorakṣanātha) seja predominantemente cosmológico, sua soteriologia apoia-se no eixo corpo–som–consciência, no qual a entrada no processo (ārambha) é um marco decisivo. A prática de nādānusandhāna — a investigação e sustentação da atenção no som interno — começa precisamente neste ponto.
4. Mauna-Ārambha: o início do silêncio
4.1. Mauna no horizonte védico-tântrico
Mauna (मौन) é o silêncio, seja como voto ascético (vāg-nirodha), seja como estado contemplativo ou como estratégia ritual para purificação da mente e dos sentidos. No tantra e nas vias do laya-yoga, o mauna não é apenas ausência de fala: é uma disposição integral que prepara o campo interno para a escuta do som sutil.
4.2. O sentido do Mauna-Ārambha
Combinando-se com ārambha, mauna-ārambha significa empreender o silêncio como ato inicial consciente. No Ekādaśa Krama, essa etapa marca a transição da atenção dispersa para a concentração profunda, inaugurando o processo de interiorização. Ela corresponde, no plano técnico, à ārambhāvasthā descrita nos textos iogues: o começo deliberado do recolhimento, sustentado pelo silêncio exterior e pela intenção de ouvir o silêncio interior.
5. Considerações finais
O termo ārambha revela, em sua trajetória semântica e prática, uma coerência entre o sentido linguístico de “começar” e a função espiritual de iniciar processos de transformação. Seja na filosofia Nyāya–Vaiśeṣika, onde fundamenta uma teoria causal, seja nos rituais védicos ou nas metodologias iogues do Haṭha e Laya, ārambha sempre implica um início que não é passivo, mas ativo e consciente.
Ao adotar mauna-ārambha como primeira etapa do Ekādaśa Krama, a tradição do INatha alinha-se tanto à precisão filológica quanto à herança prática das tradições Nātha e das Yoga-Upaniṣads, reforçando a ideia de que todo caminho interior começa com um gesto deliberado de silêncio.
Bibliografia essencial (primária e secundária)
A. Dicionários e filologia
Monier-Williams, M. A Sanskrit-English Dictionary (1899). Univ. of Cologne, interface web. Entrada ārambha. (Consulta para definições e morfologia). sanskrit-lexicon.uni-koeln.de
Apte, V. S. The Practical Sanskrit–English Dictionary (ed. online DSAL/Chicago; ed. 1890 em Archive.org). Entradas para ārambha e correlatos. dsal.uchicago.eduInternet Archive
SanskritDictionary.com (agregador MW/Apte/Macdonell). Entrada ārambha e compostos. (Instrumental como índice). sanskritdictionary.com
B. Fontes primárias iogue-tântricas
Hāṭhayogapradīpikā 4.69–4.77 (Sânscrito, Wikisource). Define आरम्भावस्था, घटावस्था, परिचयावस्था, निष्पत्त्यवस्था e menciona ग्रन्थि (granthi), incluindo ब्रह्मग्रन्थि. sa.wikisource.org
Yogatattva Upaniṣad (síntese enciclopédica com referências a eds. Ayyangar/Aiyar). Declara quatro fases comuns (ārambha… niṣpatti) aos estilos de ioga. Wikipedia
Nādabindu Upaniṣad (apresentação enciclopédica com bibliografia crítica; variantes N/S; foco em nāda e turya). Wikipedia
(Para o corpus Nātha) Siddha-Siddhānta-Paddhati (ed. e estudos em catálogos Nātha; referência de conjunto).
C. Estudos e traduções modernas
Stanford Encyclopedia of Philosophy — verbetes Nyāya/Vaiśeṣika: discussão do ārambhavāda (asatkāryavāda) na teoria da causalidade.
Ayyangar, T. R. S. (1938) The Yoga Upanishads (Adyar Library). Reunião, trad. e notas (cf. capítulos sobre nāda e fases). ia600209.us.archive.org
Mallinson, J. & Singleton, M. (2017) Roots of Yoga (Penguin). (Panorama crítico de técnicas de haṭha/laya/nāda; útil para mapear paralelos).
Mallinson, J. (ed., trad.) Hatha Yoga Pradipika (crítica/tradução; para cotejar leituras da 4ª upadeśa).
Larson, G. J. & Bhattacharya, R. S. Yoga: India’s Philosophy of Meditation (MLBD). (Contexto dos Yoga-Upaniṣads).
Beck, G. Sonic Theology: Hinduism and Sacred Sound (Motilal). (Quadro teórico do nāda).
Kane, P. V. History of Dharmaśāstra, vol. II (discussões sobre vidyārambha saṃskāra). gretil.sub.uni-goettingen.de
D. Leituras complementares (história do Haṭha/Laya)
Birch, J. Estudos sobre origens do Haṭhayoga e o Amṛtasiddhi.
Mallinson, J. Artigos sobre Nātha/Haṭha, Khecarīvidyā, Amṛtasiddhi (para balizar o pano de fundo Nātha).
Estudos recentes sobre técnicas meditativas nos textos de Haṭha (ex.: survey de 2023 sobre fases do nāda). All Research Journal
Apêndice: glossemário mínimo (Devanāgarī — IAST — PT-BR)
आरम्भ — ārambha — começo, empreendimento. sanskrit-lexicon.uni-koeln.de
मौन — mauna — silêncio (voto/prática).
मौनारम्भ — maunārambha — início do silêncio.
अवस्था — avasthā — estado, fase.
आरम्भावस्था — ārambhāvasthā — fase inicial (do nādānusandhāna). sa.wikisource.org
ग्रन्थि — granthi — “nó” sutil (brahmā-, viṣṇu-, rudra-). sa.wikisource.org
नाद — nāda — som sutil/internal (objeto de atenção contemplativa).


Comentários