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Bhāvana (भावना): No Contexto do Sanátana Dharma e das Tradições Tántricas

  • Foto do escritor: INatha
    INatha
  • 13 de ago.
  • 4 min de leitura

Atualizado: 14 de ago.


No contínuo diálogo entre tradição e prática, o termo bhāvana emerge como um conceito central para a compreensão das técnicas meditativas, devocionais e tântricas do Sanātana Dharma. Mais do que simples “visualização” ou “cultivo mental”, bhāvana articula uma tensão dinâmica entre psicologia, ritual e ontologia: ele designa o ato deliberado de formar estados internos, estabelecer identidades com o divino e, em algumas tradições, operar transformações no próprio tecido da experiência.

Esta pesquisa se propõe a examinar bhāvana em sua pluralidade histórica e intertextual — desde os usos védicos e purânicos, passando pelas práticas devocionais e contemplativas, até seu papel crucial nas tradições tântricas, incluindo o Bhāvana Upaniṣad, o Vijñāna-Bhairava e o corpus siddha-nātha. O objetivo é fornecer ao leitor não apenas um levantamento lexical e semântico, mas também uma análise crítica de suas funções filosóficas, ritualísticas e teúrgicas, oferecendo um aparato bibliográfico e glossário que permitam a continuidade de investigações aprofundadas.



1. Etimologia e campo semântico: filologia e morfologia histórica

O termo भावना (bhāvana, IAST: bhāvana, fem.) apresenta uma etimologia que remonta à raiz sânscrita √bhū (भू) — “ser, tornar-se, existir, manifestar” — e ao substantivo correlato भाव (bhāva) que designa “ser, estado, disposição, afeto, sentimento” em múltiplos níveis ontológicos e psicológicos.

Do ponto de vista morfológico, bhāvana resulta do sufixo de ação e resultado -ana ou -anā, sendo frequentemente interpretada como substantivo de ação do causativo (bhāvayati): “fazer ser”, “produzir”, “cultivar” algo, sobretudo em nível mental ou devocional.A amplitude semântica deste termo é atestada já no sânscrito clássico e se expande nas tradições religiosas e filosóficas indianas para abarcar:

  • Processo mental de cultivo deliberado (meditação, treinamento atencional);

  • Imaginação criativa e visualização ritual (própria do tantrismo);

  • Formação de estados emocionais/devocionais (na bhakti e em poéticas de rasa);

  • Realização ontológica (em algumas escolas não-duais, especialmente śaivas).

A análise lexicográfica comparada (Monier-Williams; Apte; Macdonell; Edgerton) demonstra que, ao longo dos séculos, a semântica de bhāvana oscilou entre o sentido técnico-meditativo e o sentido teúrgico-ontológico.


2. Uso intertradicional no Sanātana Dharma e paralelos pan-indianos


2.1. Hinduísmo védico e pós-védico

No corpus védico estrito, o termo bhāvana é pouco frequente, mas o substantivo bhāva aparece em hinos e fórmulas, designando disposições internas ou estados de consciência relacionados à ação ritual. No período pós-védico, sobretudo em textos épicos e purânicos, bhāvana já indica processos mentais de concepção e cultivo e aparece associado a práticas de concentração (dhyāna), devoção (bhakti) e autoformação.


2.2. Tradições devocionais e estéticas

Nas tradições de bhakti, bhāvana designa a manutenção deliberada de um estado emocional devocional (bhakti-bhāva), cultivado através de mantras, leituras e visualizações da divindade. Na teoria estética (rasa-śāstra), o termo conecta-se ao processo de sustentar um sthāyī-bhāva até que este floresça como rasa.


2.3. Budismo (Pāli e Sânscrito)

Em textos pali (Dīgha Nikāya, Majjhima Nikāya) e sânscritos (Mahāyāna-sūtras), bhāvanā assume papel técnico central: cultivo sistemático de qualidades mentais, seja na forma de samatha-bhāvanā (calma) ou vipassanā-bhāvanā (visão penetrante). Exemplos clássicos incluem mettā-bhāvanā (cultivo do amor universal) e citta-bhāvanā (cultivo da mente).


2.4. Jainismo

Nas tradições jainas, o termo designa “reflexão contemplativa” (anuprekṣā) em contextos como as dvādaśa-bhāvanā (“doze contemplações”), destinadas à purificação cognitiva e desapego.


3. Bhāvana no tantrismo: da imaginação ritual à ontologia da visualização


3.1. Função teúrgica da imaginação

No tantrismo śaiva (sobretudo no Trika de Caxemira), bhāvana é ato criador: a visualização, quando dotada de plena identificação, não é representação, mas manifestação da realidade. Este princípio se ancora na ontologia śākta segundo a qual śakti se expressa na consciência como imagem, som e intenção.


3.2. Bhāvana como śakti

Comentadores como Abhinavagupta e Kshemarāja descrevem a bhāvana como uma função intrínseca da consciência (citi-śakti), cujo exercício deliberado permite “converter” a realidade percebida em sua essência não-dual.


3.3. Modalidades operacionais no tantrismo

  • Deidade-visualização (īṣṭadevatā-bhāvana): contemplação do aspecto divino em detalhes iconográficos.

  • Yantra-bhāvana: visualização do yantra no corpo sutil (antar-yāga).

  • Mantra-bhāvana: internalização sonora do bīja ou mālā-mantra.

  • Tattva-bhāvana: contemplação dos princípios ontológicos (tattvas) e sua dissolução.


4. O Bhāvana Upaniṣad e a Śrī-Vidyā

O Bhāvana Upaniṣad é texto chave da tradição Śrī-Vidyā (provavelmente sécs. XVII–XVIII) que instrui na interiorização do Śrī Cakra. Aqui, bhāvana é o método pelo qual cada parte do yantra é concebida no corpo sutil do praticante. Bhāskararāya, no seu comentário, fornece o detalhamento das correspondências entre triângulos, pétalas, bhūpura e partes anatômicas/energéticas.

O texto confirma uma característica central da bhāvana tântrica: a não separação entre corpo ritual e corpo físico, ambos transformados em suporte da deidade.


5. Siddha-Siddhānta Paddhati e a tradição Nātha


5.1. Contexto do texto

O Siddha-Siddhānta Paddhati (atribuído a Gorakṣanāth) é tratado nātha que combina metafísica, ioga e alquimia interna. Embora o termo bhāvana não seja empregado com a frequência de outras tradições, sua função aparece implícita nas instruções sobre concepção interior do corpo como universo (piṇḍa-brahmāṇḍa-samānādhikaraṇa).


5.2. Bhāvana nātha

A prática nātha enfatiza a fusão de técnicas respiratórias, manipulação de bindu e kuṇḍalinī com visualizações estruturadas. Aqui, bhāvana é inseparável da manipulação fisiológica sutil — trata-se de uma imaginação disciplinada por suportes energéticos.


6. Implicações doutrinais e hermenêuticas


  • Do treino mental à cosmogonia ritual: a evolução semântica de bhāvana reflete um deslocamento do psicológico ao ontológico.

  • Intertradições: o mesmo termo descreve processos tão distintos como a visualização devocional vaiṣṇava, a absorção budista e a alquimia nātha.

  • Poder performativo: no tantrismo, bhāvana é “ato de ser” (bhūtvā bhāvayet) — pressupõe que a visualização é manifestação.


7. Glossário especializado


  • भावना — bhāvana (cultivo, visualização criativa, realização ontológica).

  • भाव — bhāva (estado, disposição, afeto, modo de ser).

  • अन्तर्याग — antar-yāga (adoração interna).

  • बिन्दु — bindu (ponto sutil, essência seminal).

  • नाद — nāda (som sutil primordial).


8. Bibliografia comentada


Fontes primárias

  • Bhāvana Upaniṣad, com comentário de Bhāskararāya — ed. e trad. G. V. Tagare.

  • Vijñāna-Bhairava-Tantra — ed. e trad. Jaideva Singh; M. S. G. Dyczkowski; Christopher Wallis.

  • Siddha-Siddhānta Paddhati, ed. Kalyani Mallik, Poona Oriental Book House, 1954.


Estudos secundários

  • Padoux, André. Vāc: The Concept of the Word in Selected Hindu Tantras. SUNY, 1990.

  • White, David Gordon. The Alchemical Body. Chicago, 1996.

  • Müller-Ortega, Paul E. The Triadic Heart of Śiva. SUNY, 1989.

  • Wallis, Christopher. Vijñāna-Bhairava: The Practice of Centering Awareness.


Recursos lexicais

  • Monier-Williams, A Sanskrit-English Dictionary.

  • Apte, The Practical Sanskrit-English Dictionary.

  • Edgerton, Buddhist Hybrid Sanskrit Grammar and Dictionary.

 
 
 

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