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Soma e Amṛta Genealogia, Mitos, Filosofia e Sociologia do Néctar Divino:

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    INatha
  • 27 de ago.
  • 4 min de leitura

Introdução

No imaginário religioso indiano, duas imagens dominam a noção de “néctar”: Soma (सोम, Soma) — planta, suco sacralizado e divindade védica — e Amṛta (अमृत, Amṛta), o néctar da imortalidade. Apesar de trajetórias distintas, ambos se articulam em níveis ritual, mitológico, simbólico, alquímico e político, formando um campo semântico que vincula sacralidade, poder, medicina e transcendência.


Este ensaio examina convergências e divergências entre Soma e Amṛta e discute a centralidade dessa relação para a história religiosa e social da Índia.


1. Termos e aproximação conceitual

Soma (सोम, Soma): designa a planta cujo suco era extraído para o rito, a bebida extraída, e simultaneamente a divindade (deva Soma). É, portanto, uma prática ritual-sacramental: planta → bebida → divindade → experiência extática1.


Amṛta (अमृत, Amṛta): literalmente “não-morte” (a-mṛta). Nos Purāṇas (पुराण, Purāṇa) e no Mahābhārata (महाभारत, Mahābhārata), Amṛta é obtido no samudra-manthana (सामुद्र मंथन, agitação do oceano), conferindo imortalidade aos deuses. No Tantra (तन्त्र, Tantra) e na Ayurveda (आयुर्वेद, Āyurveda), Amṛta assume sentido interno: néctar do corpo (rasāyana, bindu).


Hipótese inicial: Soma e Amṛta compartilham a função simbólica de transcender a mortalidade, mas operam em matrizes distintas: Soma é litúrgico-ecstaticamente vinculado ao sacrifício védico; Amṛta é resultado mítico-cosmológico, reinterpretado tântricamente como fluxo de longevidade interior2.


2. História ritual: Veda → Brāhmaṇa → Purāṇa


2.1 Soma no Ṛgveda e no Soma-yajña

No Ṛgveda (ऋग्वेद, ṛgveda), Soma é onipresente: centenas de hinos celebram o beber ritual do suco. O Soma-yajña (सोम यज्ञ, Soma-sacrifício) envolve extração, prensagem, oferenda ao fogo e deificação do suco.

Características centrais:

  • Consumo restrito a sacerdotes e elites (possivelmente também iniciados)

  • Entoação de hinos extáticos

  • Legitimador político e militar: conferia força e vitória (Indra, इन्द्र)3

Historicamente, o ritual Soma era elitista, exigindo recursos e mão de obra especializada, o que o vinculava à legitimação do poder real e sacerdotal.


2.2 Transição para Brāhmaṇa e Purāṇa

Nos Brāhmaṇas (ब्राह्मण, Brāhmaṇa) e Aranyakas (आरण्यक, Āraṇyaka), o ritual se torna mais alegórico. Nos Purāṇas e épicos, Soma se funde parcialmente com Amṛta: o samudra-manthana coloca o néctar imortal como eixo do mito, evidenciando exclusão e hierarquia divina4.


3. Mitologia comparada: samudra-manthana e a fisiologia ritual


3.1 Samudra-manthana e Amṛta

O mito: devas e asuras agitam o oceano para extrair tesouros (ratnas, रत्न). Vishṇu (विष्णु), sob a forma de Mohini (मोहिनी), engana os asuras para que os devas obtenham o Amṛta.

Símbolos: triunfo da ordem cósmica, possibilidade de imortalidade, exclusão e hierarquia — apenas certos seres têm acesso ao néctar5.


3.2 Soma como experiência extática

Soma é humano e ritual: o suco transforma o sacerdote conferindo eloquência (vāc, वाच), inspiração (prabodha, प्रबोध), força ritual. Soma e Amṛta articulam a axialidade simbólica: o néctar conecta humano e divino.


4. Filosofia e teologia: imortalidade, transcendência e experiência


4.1 Soma como veículo de ṛta e revelação

O ritual Soma não é mera intoxicação; é technē da revelação: o beber, acompanhado de śruti (श्रुति, hinos), conecta o sacerdote ao cosmos. Soma opera como instrumento epifânico6.


4.2 Amṛta como símbolo ontológico

Amṛta simboliza a ordem cósmica que rompe a finitude. No bramanismo posterior, a imortalidade é ideologizada (mokṣa, मोक्ष), e Amṛta serve como metáfora ontológica7.


4.3 Interiorização tântrica

No Tantra, Soma e Amṛta convergem: o amṛta interno (rasa, रस, bindu) é preservado pelo yogin via mudrā (मुद्रा), bandha (बन्ध). O Soma ritual é ressignificado: experiência corporal e energética, não ingestão externa.

Nota especial: Na tradição secreta da Natha Sampradaya (नाथ संप्रदाय, linhagem Natha), o Soma como bebida existe e é utilizado regularmente, mas a fórmula secreta é ensinada apenas a iniciados8.


5. Aspectos farmacológicos e históricos-críticos


5.1 Identidade botânica do Soma

Debates modernos sugerem Amanita muscaria, Ephedra spp., Sarcostemma viminale, entre outros. Não há consenso; o rito pode ter incluído múltiplas substâncias ou significado primariamente simbólico.


5.2 Amṛta e Ayurveda

Amṛta entra em práticas rasāyana (रसायन, rejuvenescimento). Alguns preparados (somarasa) são tratados como “néctares” que prolongam a vida, mas a metáfora predomina sobre a substância.


6. Sociologia do néctar: poder, exclusão e legitimação

  • Elitismo ritual: o acesso ao Soma conferia legitimidade política e social.

  • Amṛta e poder: o mito do samudra-manthana espelha disputas humanas sobre recursos vitais.

  • Transformações históricas: com o desaparecimento do Soma literal, os símbolos migraram para yoga, tantra e rasāyana, influenciando práticas espirituais e identidades culturais modernas9.


7. Leituras integradas: Soma e Amṛta hoje

  • Categoria ritual-epifânica (Soma): técnica que produz conhecimento e legitimação política.

  • Categoria mitológico-ontológica (Amṛta): símbolo da busca humana por imortalidade.

  • Convergência tântrica: interiorização do néctar no corpo sutil.

  • Dimensão sociológica: situar quem bebe, quando e com quais legitimações.


8. Conclusão

Soma e Amṛta representam dois pólos do imaginário sagrado indiano: ambos lidam com a transcendência da mortalidade, mas via rotas distintas. Soma opera no ritual e na epifania coletiva; Amṛta, na narrativa cosmológica e na experiência interior tântrica. A história do néctar revela como religião, medicina, política e filosofia trabalharam para transfigurar a condição humana.



Bibliografia


  • Daniélou, A. (1991). The Myths and Gods of India. Rochester: Inner Traditions.

  • Flood, G. (2006). The Tantric Body: The Secret Tradition of Hindu Religion. London: I.B. Tauris.

  • Kinsley, D. (1988). Hindu Goddesses: Vision of the Divine Feminine in the Hindu Religious Traditions. Berkeley: University of California Press.

  • Macdonell, A. A. (1897). Vedic Mythology. Oxford: Clarendon Press.

  • Witzel, M. (1997). Vedas and Upanishads. Cambridge: Harvard University Press.

 

 
 
 

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