Soma, Amṛta e a Disputa pelo Néctar entre Brâmanes e Tântricos.
- INatha

- 27 de ago.
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Introdução
O Soma (सोम, Soma) e o Amṛta (अमृत, Amṛta) representam dois pólos centrais do imaginário sagrado indiano. Enquanto o primeiro é associado ao ritual védico, à planta, ao suco e à divindade, o segundo é o néctar mítico da imortalidade, obtido no samudra-manthana (सामुद्र मंथन, agitação do oceano) e reinterpretado no Tantra como experiência interna.
Este ensaio explora a hipótese de que, historicamente, existiu uma disputa simbólica, ritual e política pelo acesso ao Soma, entre brâmanes védicos e praticantes tântricos e yogues, articulando evidências védicas, purânicas, upaniṣádicas e tântricas.
1. Contexto védico: Soma como monopólio bramânico
Nos Vedas (वेद, Veda), Soma aparece como planta, bebida e divindade. O Soma-yajña (सोम यज्ञ, sacrifício do Soma) exigia especialistas brâmanes, instrumentos específicos e recursos do patrocinador, tipicamente reis ou elites rituais1.
O ritual criava monopólio social e político:
Apenas brâmanes podiam preparar e consagrar o Soma.
Apenas os patronos ricos podiam custear o yajña.
O consumo do Soma validava a autoridade real e sacerdotal, ligando o rei a Indra e aos deuses2.
Nesse contexto, controlar o Soma equivalia a controlar a legitimação religiosa e política.
2. Transformações filosóficas e críticas ao ritual
Com o avanço do período dos Brāhmaṇas (ब्राह्मण, Brāhmaṇa) e das Upaniṣads (उपनिषद्, Upaniṣad), o Soma deixou de ser apenas um vegetal ou bebida, passando a ser interpretado como símbolo da imortalidade, da consciência lunar e da experiência transcendental.
Exemplos:
Chāndogya Upaniṣad (छांदोग्य उपनिषद्, Chāndogya Upaniṣad) associa a Lua ao cálice de Soma, pelo qual a alma das entidades recém-falecidas passa antes de renascer3.
Textos bramânicos e upaniṣádicos enfatizam o valor do conhecimento (vidyā, विद्या) e da revelação (prabodha, प्रबोध) acima do ritual externo4.
Essa transição abre espaço para movimentos alternativos: śramaṇas (श्रमण, ascetas), budistas, jainistas e, posteriormente, correntes tântricas que interiorizam o néctar.
3. Visão tântrica: Soma como experiência interior
No Tantra (तन्त्र, Tantra) e na tradição yogue medieval, o Soma não é mais exclusivamente vegetal, mas um néctar sutil — amṛta (अमृत) — fluindo do bindu lunar (बिंदु) no crânio, descendo pelo canal central suṣumṇā (सुषुम्णा).
Práticas como mudrā (मुद्रा), bandha (बन्ध), khecarī mudrā (केचारि मुद्रा) permitem ao yogin reter o amṛta, mantendo a vitalidade espiritual5.
Essa interiorização do Soma democratiza o acesso: qualquer iniciado disciplinado pode experimentar o néctar, sem depender de brâmanes ou de rituais custosos.
Nota: na tradição secreta da Natha Sampradaya (नाथ संप्रदाय), o Soma como bebida física ainda existe e é usado regularmente, mas a fórmula é ensinada exclusivamente aos iniciados6.
4. Possível conflito sociopolítico
A transição do Soma externo para o interno reflete uma ruptura política e ideológica:
Bramânicos: monopólio ritual e litúrgico, controle sobre o conhecimento e a legitimidade divina.
Tântricos e yogues: acesso ao verdadeiro Soma via experiência interna, sem mediação sacerdotal7.
O conflito é simbólico e funcional, ecoando tensões entre religião institucionalizada e movimentos esotéricos e marginais.
5. Paralelos mitológicos: Soma e Amṛta
O samudra-manthana (सामुद्र मंथन), com devas e asuras disputando o Amṛta, serve como alegoria:
Quem controla o néctar controla poder, imortalidade e prestígio divino.
Na esfera social, os brâmanes detinham o monopólio ritual; os tântricos reivindicavam a interiorização e autonomia da experiência8.
6. Sociologia do acesso ao sagrado
Controlar o Soma significa controlar a experiência do divino, legitimando hierarquias. Paralelos históricos incluem a Eucaristia no cristianismo, monopolizada pelo clero antes da Reforma.
No contexto hindu:
Soma histórico: elitista, ritual e politicamente central.
Soma interior tântrico: acessível a qualquer praticante disciplinado, redefinindo legitimidade e autoridade9.
7. Síntese e implicações
A disputa pelo Soma é, portanto, difusa, simbólica e ritual:
Para os brâmanes, Soma = ritual, exclusividade, hierarquia.
Para os tântricos e yogues, Soma = experiência interna, democratizada.
Filosoficamente, Soma e Amṛta convergem como símbolos universais da imortalidade e transcendência.
O movimento do Soma, de planta rara e elitista a princípio interno e democrático, acompanha mudanças de poder espiritual na Índia, refletindo disputas entre tradição oficial e correntes marginais.
Bibliografia
Daniélou, A. (1991). The Myths and Gods of India. Rochester: Inner Traditions.
Flood, G. (2006). The Tantric Body: The Secret Tradition of Hindu Religion. London: I.B. Tauris.
Kinsley, D. (1988). Hindu Goddesses: Vision of the Divine Feminine in the Hindu Religious Traditions. Berkeley: University of California Press.
Macdonell, A. A. (1897). Vedic Mythology. Oxford: Clarendon Press.
Witzel, M. (1997). Vedas and Upanishads. Cambridge: Harvard University Press.


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