Transição Védica → Bramânica: Poder Ritual, Política e Contestação Śramaṇica.
- INatha

- 27 de ago.
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Introdução
O período védico inicial (Ṛgveda, c. 1500–1000 a.C.) caracteriza-se por uma prática ritual relativamente fluida e experimental, enquanto o período bramânico (c. 1000–600 a.C.) marca formalização, hierarquia e elitização. Essa transição teve implicações profundas no acesso ao poder ritual e político, criando tensões que seriam posteriormente exploradas por movimentos contestatórios, como os śramaṇas (श्रमण, Śramaṇa).
1. Período védico: ritual e experiência
No Ṛgveda (ऋग्वेद, Ṛgveda), os rituais do Soma (Soma-yajña, सोम यज्ञ) são centrais:
Sacrifício (yajña, यज्ञ): oferecido a deuses como Indra, Agni e Varuṇa; o consumo do Soma conferia inspiração (prabodha, प्रबोध) e eloquência (vā́c, वाच्) aos ṛṣis (sábios).
Hierarquia flexível: o acesso ao ritual dependia da habilidade espiritual do ṛṣi, não de uma institucionalização rígida.
Função política embrionária: reis patrocinavam yajñas, mas sem monopolizar completamente o poder religioso.
Nesta fase, o Soma e o yajña funcionavam tanto como veículos de transcendência quanto como instrumentos de legitimação emergente, mas ainda não eram totalmente exclusivos de uma casta sacerdotal formal1.
2. Período bramânico: formalização e monopolização
Com a consolidação dos Brāhmaṇas (ब्राह्मण, Brāhmaṇa) e Śrautasūtras (श्रौतसूत्र, Śrautasūtra), os rituais védicos passaram por estratificação e codificação:
Hierarquia sacerdotal: funções especializadas como hotṛ (recitador), adhvaryu (executor físico), udgātṛ (cantor) e brahman (supervisor).
Conhecimento secreto: mantras e procedimentos ritualísticos tornaram-se exclusivos, sendo transmitidos apenas a iniciados.
Exigência econômica: o Soma-yajña dependia de recursos substanciais, incluindo importação de plantas raras, sacrifícios de gado e metais preciosos2.
A consequência é a elitização do poder ritual: o controle do Soma e do yajña passa a ser monopólio bramânico, enquanto reis e elites econômicas usam o ritual para legitimar autoridade e manter relações com o divino (dharma, धर्म)3.
3. Contestação e surgimento dos śramaṇas
O surgimento dos movimentos śramaṇicos (श्रमण, Śramaṇa) no período médio-vedico (c. 600 a.C.) pode ser entendido como resposta à exclusividade bramânica:
Crítica social e religiosa: ascetas e praticantes questionam o monopólio do ritual, afirmando que a experiência espiritual não depende de sacerdotes ou rituais caros.
Interiorização do soma e do amṛta: práticas de meditação (dhyāna, ध्यान), disciplina ascética (tapas, तपस्) e respiração (prāṇāyāma, प्राणायाम) permitem gerar o “Soma interior” ou néctar (amṛta, अमृत) sem intermediários4.
Democratização espiritual: o acesso à transcendência deixa de estar vinculado a status social, criando novas formas de poder e autoridade simbólica.
Essa contestação não se limita ao plano filosófico; ela reestrutura o acesso à imortalidade simbólica, refletida tanto nos relatos míticos (samudra-manthana) quanto nas práticas corporais tântricas posteriores5.
4. Síntese
A transição védico → bramânica evidencia:
Formalização do ritual: estratificação e codificação aumentam a exclusividade.
Elitização do poder: controle do Soma/yajña reforça autoridade política e religiosa dos brāhmanes.
Resposta śramaṇica: crítica à hierarquia ritual, interiorização da experiência e democratização espiritual.
Essa dinâmica revela como poder ritual, política e espiritualidade estavam profundamente interligados, preparando o terreno para a emergência de tradições tântricas e marginais que reinterpretariam o soma como princípio interior.
Bibliografia
Daniélou, A. (1991). The Myths and Gods of India. Rochester: Inner Traditions.
Flood, G. (2006). The Tantric Body: The Secret Tradition of Hindu Religion. London: I.B. Tauris.
Kinsley, D. (1988). Hindu Goddesses: Vision of the Divine Feminine in the Hindu Religious Traditions. Berkeley: University of California Press.
Macdonell, A. A. (1897). Vedic Mythology. Oxford: Clarendon Press.
Olivelle, P. (1996). The Āśrama System: The History and Hermeneutics of a Religious Institution. Oxford: Oxford University Press.


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