Os Tantra no Contexto dos Vedas e dos Śramaṇas (Parte 08): O Pratyabhijñā (प्रत्यभिज्ञा).
- INatha

- 29 de ago.
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Atualizado: 31 de ago.
O sistema Pratyabhijñā (प्रत्यभिज्ञा – pratyabhijñā, “reconhecimento”) constitui um dos pilares mais refinados e filosóficos do Śaivismo da Caxemira (कश्मीर शैवदर्शन – Kaśmīra Śaivadarśana), especialmente no interior da escola Trika (त्रिक – trika, “triplo”).
Desenvolvido entre os séculos IX e X por grandes mestres como Utpaladeva (उत्पलदेव) e Abhinavagupta (अभिनवगुप्त), este sistema propõe que a liberação espiritual (mokṣa – मोक्ष, libertação) não se alcança por meio de práticas rituais ou ascéticas longas, mas através do reconhecimento direto da própria identidade com a consciência absoluta, Śiva (शिव – śiva, o auspicioso).
Esse ensinamento não surge isolado. Ele se enraíza no vasto diálogo entre a tradição védica (Veda – वेद, “conhecimento”), os movimentos śramaṇas (श्रवण – śramaṇa, “esforço ascético”) e as práticas tântricas (तन्त्र – tantra, “teia, método”).
Assim, compreender o Pratyabhijñā em seu contexto histórico e filosófico é abrir-se para o fio contínuo que une o mais antigo canto dos Ṛgvedas até a sistematização não-dual da consciência no Tantrismo da Caxemira.
1. Raízes Védicas da noção de Reconhecimento
Nos Vedas (वेद), sobretudo no Ṛgveda (ऋग्वेद), encontramos os primeiros lampejos da concepção de que a consciência individual participa da consciência cósmica. Hinos como Ṛgveda 1.164 falam do “um que é nomeado de muitas formas” (ekaṃ sat viprā bahudhā vadanti), estabelecendo a ideia de uma unidade última além da multiplicidade.
Já nas Upaniṣads (उपनिषद्), o ensinamento da identidade entre ātman (आत्मन् – si mesmo) e brahman (ब्रह्मन् – absoluto) prepara o terreno para o reconhecimento.
Fórmulas como “tat tvam asi” (तत् त्वम् असि – tu és isso) e “ahaṃ brahmāsmi” (अहं ब्रह्मास्मि – eu sou o Brahman) ecoam de forma surpreendente na intuição central do Pratyabhijñā: a libertação não é uma conquista futura, mas um reconhecimento do que já é.
Portanto, o Pratyabhijñā pode ser visto como herdeiro direto da linhagem védica-upaniṣádica, radicalizando-a e reformulando-a dentro do vocabulário do tantra.
2. Diálogo com os Śramaṇas
O movimento dos śramaṇas (श्रवण), que inclui jainistas, budistas e correntes materialistas, surge como crítica e alternativa à ortodoxia védica. Entre os séculos VI e III a.C., esses movimentos propõem caminhos baseados no esforço pessoal, disciplina ética e práticas meditativas.
O budismo, por exemplo, enfatiza o anātman (अनात्मन् – não-eu), o fluxo condicionado dos fenômenos e a superação da ignorância pela iluminação.
O jainismo, por sua vez, concebe a libertação pela purificação gradual da alma através de austeridades.
O Pratyabhijñā dialoga intensamente com esses sistemas. De um lado, reconhece o valor da crítica śramaṇica ao ritualismo védico. De outro, responde à doutrina budista do vazio (śūnyatā – शून्यता) com a afirmação de que a vacuidade não é ausência, mas plenitude de consciência: cit (चित् – consciência).
Assim, ao invés de dissolver a subjetividade, o Pratyabhijñā busca reconhecer que o próprio sujeito já é a manifestação da consciência suprema.
3. O contexto Tântrico e a emergência do Pratyabhijñā
O tantra (तन्त्र), em sua acepção ampla, representa uma revolução religiosa e filosófica no subcontinente indiano (séculos V–X). Combinando cosmologia, práticas rituais, uso de mantras e visualizações, o tantra desloca a ênfase da renúncia para a transformação da vida cotidiana em caminho espiritual.
No Śaivismo da Caxemira, especialmente na escola Trika, os tantras (como o Mālinīvijayottara Tantra) oferecem a base ritual e meditativa.
Porém, o Pratyabhijñā surge como uma releitura filosófica: a verdadeira iniciação (dīkṣā – दीक्षा) não é externa, mas acontece quando o discípulo reconhece sua própria natureza divina.
Diferentemente de outras formas de tantrismo que enfatizam práticas complexas de kuṇḍalinī-yoga (कुण्डलिनी योग), mantras e rituais, a escola Pratyabhijñā insiste que todas essas práticas são apenas suportes para a anubhava (अनुभव – experiência direta) do reconhecimento.
4. A Doutrina do Reconhecimento
O coração do sistema é simples e profundo:
O Eu individual (jīva – जीव) esqueceu sua verdadeira natureza, obscurecido pelas limitações da mente e da matéria.
A libertação não é obtenção de algo novo, mas o pratyabhijñā (reconhecimento) de que o Eu sempre foi Śiva.
Esse reconhecimento pode ser instantâneo, despertado pelo ensinamento de um mestre ou pela própria contemplação.
Utpaladeva descreve que o universo inteiro é uma vibração (spanda – स्पन्द) da consciência de Śiva. Logo, reconhecer-se é também reconhecer o mundo como expressão da mesma consciência.
Assim, o Pratyabhijñā não é apenas uma filosofia de salvação individual, mas uma visão integral do cosmos como auto-revelação da consciência divina.
Conclusão
O Pratyabhijñā, no coração do Śaivismo da Caxemira, é a ponte que liga a intuição unitária dos Vedas, a crítica dos śramaṇas e a transformação espiritual do tantra. Ele sintetiza esses três grandes fluxos da tradição indiana ao propor que a libertação é, em essência, um ato de reconhecimento: ver que o que buscávamos sempre esteve presente.
Se os Vedas proclamaram a identidade entre ātman e brahman, se os śramaṇas exigiram disciplina e clareza, e se os tantras expandiram os meios de integração, o Pratyabhijñā nos lembra que, ao final, basta reconhecer: “Aham eva Śivaḥ” (अहम् एव शिवः – Eu sou verdadeiramente Śiva).
Bibliografia
Abhinavagupta. Īśvarapratyabhijñā-vimarśinī. Trad. Raffaele Torella. Delhi: Motilal Banarsidass, 1985.
Utpaladeva. Īśvarapratyabhijñā-kārikā. Trad. Raffaele Torella. Delhi: Motilal Banarsidass, 1994.
Dyczkowski, Mark S. G. The Doctrine of Vibration: An Analysis of the Doctrines and Practices of Kashmir Shaivism. Delhi: Motilal Banarsidass, 1987.
Muller-Ortega, Paul. The Triadic Heart of Śiva. Albany: SUNY Press, 1989.
Sanderson, Alexis. “Śaivism and the Tantric Traditions.” In: The World’s Religions, edited by S. Sutherland et al. London: Routledge, 1988.
Singh, Jaideva. Pratyabhijñāhṛdayam: The Secret of Self-Recognition. Delhi: Motilal Banarsidass, 1989.


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