Os Tantra no Contexto dos Vedas e dos Śramaṇas (Parte 07): O Trika (त्रिक).
- INatha

- 29 de ago.
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O sistema Trika (त्रिक, trika), também conhecido como Trika Śaivismo da Caxemira, é uma das expressões mais sofisticadas e abrangentes da filosofia e prática do Śaivismo não-dual. Desenvolvido entre os séculos IX e XI d.C. no Vale da Caxemira, esse sistema sintetiza tradições védicas, heranças do movimento śramaṇico e as técnicas corporais, energéticas e rituais do universo tântrico. A designação “Trika” — literalmente “tríplice” — refere-se aos três grupos fundamentais que estruturam sua cosmovisão: as deusas (त्रिशक्ति, triśakti), as categorias ontológicas (त्रितत्त्व, tritattva) e os níveis da realidade (त्रिक, trika) que descrevem a manifestação do Absoluto.
Este artigo examina o Trika dentro de três eixos: (1) sua relação com o corpus védico (वेद, veda) e a tradição bramânica, (2) o diálogo com os movimentos śramaṇas (श्रवण, śramaṇa), notadamente budistas e jainas, e (3) a síntese e inovação no interior dos tantras (तन्त्र, tantra), que conferem ao sistema seu caráter próprio.
O Legado Védico no Trika
O Trika herda e reinterpreta elementos centrais dos Vedas (वेद, veda, “conhecimento”), não como um sistema ortodoxo bramânico, mas como uma releitura que integra ritual, mantra e metafísica.
Mantra e vibração sagrada
A ideia védica de que o universo emerge do śabda (शब्द, śabda, “som”) encontra no Trika uma formulação sofisticada através do conceito de spanda (स्पन्द, spanda, “vibração”). Enquanto os hinos védicos (ṛc) louvavam deuses cósmicos através da recitação, o Trika sustenta que o próprio cosmos pulsa como vibração da Consciência.
Sacralidade do fogo
O papel do Agni (अग्नि, agni) nos Vedas — mediador entre homens e deuses — é reinterpretado na experiência interna do yogin: o fogo do ritual externo se converte em fogo interior da consciência desperta.
Upaniṣads e não-dualismo
O Trika dialoga diretamente com a tradição upaniṣádica, sobretudo na ideia de que o Absoluto é ao mesmo tempo imanente e transcendente. O Paramaśiva (परमशिव, paramaśiva) é descrito como pūrṇāhantā (पूर्णाहन्ता, pūrṇāhantā, “Eu total”), conceito que ressoa com a fórmula védica “Aham Brahmāsmi” (अहम् ब्रह्मास्मि, “Eu sou Brahman”).
A Influência dos Śramaṇas
O Trika se desenvolveu em um contexto marcado pelo florescimento de tradições śramaṇas (श्रवण, śramaṇa, “esforçadores/renunciantes”), como o budismo e o jainismo, que influenciaram seu ambiente filosófico.
Crítica ao dualismo
Assim como as escolas budistas Madhyamaka e Yogācāra propuseram a vacuidade (śūnyatā, शून्यता) e a natureza da mente (citta-mātra, चित्तमात्र), o Trika formulou uma visão em que a realidade é não-dual, mas não um vazio inerte: ela é consciência pulsante, criativa e auto-reveladora.
Práticas meditativas
O contato com tradições śramaṇas enriqueceu o repertório contemplativo do Trika. Os textos do Vijñānabhairava Tantra (विज्ञानभैरवतन्त्र, vijñānabhairava-tantra) apresentam 112 métodos de meditação, muitos dos quais ecoam práticas budistas de atenção plena e concentração, porém reinterpretados como meios de despertar a identidade com o divino.
Ascese e interiorização
Ao contrário do vedismo ritualista, tanto śramaṇas quanto śaivas propuseram a interiorização da prática: o sacrifício deixa de ser externo e se torna antaryāga (अन्तर्याग, antaryāga, “sacrifício interior”), conceito caro ao Trika.
O Universo Tântrico e a Síntese do Trika
O Trika pertence ao grupo de tradições conhecido como Śaiva Tantra (शैव तन्त्र, śaiva tantra), caracterizado pela busca da experiência direta do divino através do corpo, da energia e da mente.
As três deusas (triśakti)
O núcleo devocional do Trika gira em torno de três formas da Deusa:
Parā (परा, parā) – a suprema, não manifestada;
Parāparā (परा-परा, parāparā) – intermediária, transição entre absoluto e relativo;
Aparā (अपरा, aparā) – imanente, manifesta no mundo.
Essas tríades são reflexo da ênfase tântrica na śakti (शक्ति, śakti, “energia/poder”) como aspecto dinâmico do Absoluto.
Categorias ontológicas (tattva)
O Trika sistematiza os tattvas (तत्त्व, tattva, “princípios da realidade”) em 36 níveis que descrevem a emanação do universo desde o Absoluto até a matéria bruta, reinterpretando esquemas sāmkhya e tântricos.
Prática espiritual
O método do Trika é simultaneamente ritualístico, meditativo e corporal. Práticas como nyāsa (न्यास, nyāsa, “colocação mântrica no corpo”), mantra-japa (मन्त्रजप, mantrajapa, “recitação de mantras”), visualizações e yoga de energia são meios de transcender a percepção limitada do eu e realizar o estado de jīvanmukti (जीवन्मुक्ति, jīvanmukti, “libertação em vida”).
Não-dualismo radical
O Trika sustenta que o mundo não é ilusão, mas manifestação real da consciência. Assim, o objetivo não é negar o mundo, mas reconhecer (pratyabhijñā, प्रत्यभिज्ञा) a identidade entre o eu individual e o Absoluto.
Conclusão
O Trika representa uma das culminâncias do pensamento indiano, fundindo a herança ritual e mântrica dos Vedas, o espírito crítico e contemplativo dos śramaṇas, e a experimentação ousada e integral dos tantras. No seu coração está a afirmação de que tudo o que existe é expressão da consciência livre e criativa (svātantrya, स्वातन्त्र्य) de Śiva.
Essa síntese não é apenas teórica: ela orienta práticas transformadoras que conduzem o praticante ao reconhecimento de sua identidade com o Absoluto, superando a dicotomia entre sagrado e profano, transcendente e imanente, Veda e Tantra.
O Trika, assim, permanece como um caminho vivo de realização e uma das mais refinadas filosofias do não-dualismo hindu.
Bibliografia
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