Os Tantra no Contexto dos Vedas e dos Śramaṇas (Parte 06): O Kashmir Śaivismo (कश्मीर शैवदर्शन, Kaśmīra Śaivadarśana).
- INatha

- 29 de ago.
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O Kashmir Śaivismo (कश्मीर शैवदर्शन, Kaśmīra Śaivadarśana) constitui uma das mais sofisticadas tradições filosófico-místicas da Índia medieval. Desenvolvido entre os séculos IX e XII da era comum, no vale da Caxemira, este sistema não apenas sintetizou elementos védicos (वेद, veda – "conhecimento sagrado"), mas também dialogou intensamente com tradições śramaṇicas (श्रवण, śramaṇa – "aquele que se esforça", termo associado ao ascetismo budista, jainista e de renunciantes védicos) e com o vasto universo dos tantras (तन्त्र, tantra – "tecido", "estrutura", "trama ritual e cosmológica").
Mais do que uma religião, o Kashmir Śaivismo se apresenta como uma darśana (दर्शन, darśana – "visão", "filosofia") que integra metafísica, cosmologia, práticas ritualísticas, psicologia espiritual e gnose libertadora.
Sua profundidade filosófica o coloca em diálogo com escolas advaita (não-dualistas), mas com um tom marcadamente dinâmico e criativo, onde o universo é visto como expressão direta da consciência divina, Śiva (शिव, Śiva – "auspicioso").
1. As Raízes Védicas
Embora o Kashmir Śaivismo floresça em uma época posterior, ele se ancora em aspectos fundamentais da tradição védica. Nos Saṃhitās (संहिता, Saṃhitā – "coleção") e nos Brāhmaṇas (ब्राह्मण, Brāhmaṇa – textos ritualísticos védicos), encontramos referências a deidades e princípios que posteriormente serão associados a Śiva, como Rudra (रुद्र, Rudra – "o terrível", "o que ruge"), uma divindade paradoxal de destruição e cura, medo e proteção.
O Śvetāśvatara Upaniṣad (श्वेताश्वतर उपनिषद्), texto tardio do corpus védico, é central nesse processo. Ali se encontra a identificação de Rudra-Śiva como princípio cósmico supremo, onipresente e transcendente, estabelecendo uma ponte entre o pensamento védico e o monismo śaiva.
Além disso, o ritualismo védico forneceu ao śaivismo elementos de sacralização do cosmos e da linguagem, que mais tarde seriam transpostos para os mantras, mudrās e visualizações do tantra śaiva.
2. O Diálogo com as Tradições Śramaṇicas
O período em que o Kashmir Śaivismo se consolida é também o auge do florescimento das tradições śramaṇicas, especialmente o Budismo (बौद्ध, Bauddha) e o Jainismo (जैन, Jaina).
A dialética budista e a noção de śūnyatā (शून्यता – vacuidade) influenciaram profundamente os pensadores śaivas, ainda que muitas vezes em contraposição. Enquanto o Budismo Mahāyāna via a vacuidade como ausência de essência, o Kashmir Śaivismo afirmava a plenitude da consciência de Śiva como fundamento do real.
O universo não é "vazio", mas manifestação da liberdade e potência da consciência absoluta.
Também as técnicas meditativas budistas, como o cultivo de atenção e visualizações, foram assimiladas e reinterpretadas dentro de um quadro śaiva, que enfatizava o reconhecimento da identidade entre sujeito, objeto e consciência.
Do Jainismo, herdou-se o rigor do ascetismo e a disciplina ética, mas com ressignificação: no lugar da renúncia absoluta, o Kashmir Śaivismo defendeu uma espiritualidade da vida no mundo, onde tudo é expressão de Śiva.
3. O Horizonte Tântrico
Nenhum estudo sobre o Kashmir Śaivismo seria completo sem situá-lo dentro do tantra (तन्त्र). O Śaivismo da Caxemira é um ramo dos chamados Tantras Śaivas Não-dualistas (अद्वैत शैव तन्त्र, advaita śaiva tantra), particularmente associados à tradição Trika (त्रिक, Trika – "três"), que se refere à tríade de Parā (पर – suprema), Parāparā (परापरा – suprema-relativa) e Aparā (अपरा – relativa), níveis de manifestação da consciência.
Dentre os textos fundamentais destacam-se:
Mālinīvijayottara Tantra (मालिनीविजयोत्तर तन्त्र)
Svachchandatantra (स्वच्छन्द तन्त्र)
Vijñānabhairava Tantra (विज्ञानभैरव तन्त्र – "Tantra do Bhairava do Conhecimento"), um manual prático de 112 técnicas de meditação.
A contribuição maior do tantrismo foi a ênfase na experiência direta (anubhava, अनुभव) e na integração entre o corpo, a energia e a consciência. No Kashmir Śaivismo, práticas como a recitação de mantras, visualizações, rituais internos e contemplações do sopro (prāṇa, प्राण) visam levar o praticante ao reconhecimento de que o eu individual não é senão Śiva em ato.
4. Filosofia e Cosmologia
A ontologia śaiva parte do princípio de que o absoluto é Cit (चित् – consciência), idêntico a Śiva. Este absoluto, em sua liberdade criativa, manifesta-se como o cosmos através do poder de Śakti (शक्ति – energia, potência).
O processo de manifestação é descrito em 36 tattvas (तत्त्व – princípios), que vão do absoluto incondicionado até a matéria densa. Assim, o universo é uma gradação da própria consciência, e não algo separado dela.
Um dos conceitos centrais é Spanda (स्पन्द – vibração, pulsação): o universo pulsa como expressão rítmica da consciência divina. Outro é Pratyabhijñā (प्रत्यभिज्ञा – reconhecimento), filosofia fundada por Utpaladeva (उत्पलदेव), que ensina que a libertação não consiste em criar algo novo, mas em reconhecer a identidade eterna do eu com Śiva.
Conclusão
O Kashmir Śaivismo representa uma das mais profundas sínteses da tradição indiana. Enraizado nos Vedas, dialogando criticamente com as correntes śramaṇicas, e plenamente integrado ao universo tântrico, ele revela uma visão não-dual onde o cosmos inteiro é expressão da consciência suprema.
Em tempos contemporâneos, sua filosofia continua a inspirar estudiosos, praticantes e buscadores espirituais que encontram nela não apenas uma metafísica sofisticada, mas sobretudo um caminho de experiência direta, onde o divino é reconhecido em cada instante da vida.
Bibliografia
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Singh, Jaideva. Pratyabhijñāhṛdayam: The Secret of Self-Recognition. Motilal Banarsidass, 1989.
Sanderson, Alexis. "Śaivism and the Tantric Traditions." In The World's Religions, edited by S. Sutherland et al., Routledge, 1988.
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