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Os Tantra no Contexto dos Vedas e dos Śramaṇas (Parte 05): O Śaiva Siddhānta (शैवसिद्धान्त).

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    INatha
  • 29 de ago.
  • 4 min de leitura

O Śaiva Siddhānta (शैवसिद्धान्त, śaivasiddhānta, "a conclusão/estabelecimento do śaivismo") constitui uma das tradições mais antigas e sistemáticas do śaivismo indiano. Seu desenvolvimento histórico situa-se no entrecruzamento de três grandes eixos da religiosidade e da filosofia da Índia antiga:


  1. a herança védica (वेद, veda, "conhecimento revelado");

  2. as correntes śramaṇa (श्र मण, śramaṇa, "aquele que se esforça", termo aplicado a ascetas não-bramânicos como budistas, jainas e ājīvikas);

  3. e as práticas e doutrinas dos tantras (तन्त्र, tantra, "trama", "tecido", "estrutura").


Assim, compreender o Śaiva Siddhānta requer situá-lo nesse campo de tensões e diálogos: ele é simultaneamente herdeiro da autoridade védica, interlocutor e assimilador do radicalismo śramaṇico, e participante ativo da proliferação de correntes tântricas entre os séculos V e X d.C.


Śaiva Siddhānta e os Vedas

O Śaiva Siddhānta, embora centrado na figura de Śiva (शिव, śiva, "o auspicioso"), afirma sua continuidade com o vedaśāstra (वेदशास्त्र, vedaśāstra, "ciência/autoridade dos Vedas"). A filiação védica é garantida por vários elementos:


  • o uso de hinos védicos que invocam Rudra (रुद्र, rudra, "o terrível"), considerado um antecedente de Śiva;

  • a preservação da ritualística śrauta (श्रौत, śrauta, ligada ao śruti, revelação) como fundamento de autoridade;

  • a legitimação da teologia através de categorias como brahman (ब्रह्मन्, brahman, "absoluto, princípio supremo") e ātman (आत्मन्, ātman, "si-mesmo, alma"), reinterpretadas sob uma ótica devocional.


A relação é, portanto, dupla: de um lado, o Śaiva Siddhānta se apresenta como ortodoxo (vaidika, वैदिक), preservando o prestígio do veda; de outro, introduz uma ênfase particular na devoção (bhakti, भक्ति) e na graça (anugraha, अनुग्रह) de Śiva como condição para a libertação (mokṣa, मोक्ष, "libertação").


Diálogo e Assimilação dos Śramaṇas


O Śaiva Siddhānta não surge em um vazio. Entre os séculos VI a.C. e IV d.C., a Índia foi profundamente marcada pelo impacto das correntes śramaṇas, que questionaram o monopólio védico, a centralidade do sacrifício e a autoridade hereditária dos brāhmaṇas. Termos como:


  • mokṣa (मोक्ष, libertação) e nirvāṇa (निर्वाण, extinção, sopro apagado),

  • saṃnyāsa (संन्यास, renúncia),

  • ahiṃsā (अहिंसा, não-violência),


foram difundidos e sistematizados por budistas e jainas, antes de serem reabsorvidos pelas tradições bramânicas e śaivas.


No caso do Śaiva Siddhānta, a assimilação é evidente: o ideal do saṃnyāsin (संन्यासिन्, renunciante) aparece como o grau máximo da trajetória espiritual. Ainda que mantenha uma estrutura ritual e teológica védica, a ênfase desloca-se para práticas de renúncia, meditação, ascese e devoção que dialogam claramente com a sensibilidade śramaṇica.


Esse movimento de assimilação — de termos, conceitos e práticas — pode ser interpretado como uma estratégia de síntese: preservar a autoridade dos Vedas, mas absorver a força social e espiritual dos śramaṇas.


Śaiva Siddhānta e os Tantras

Se os Vedas oferecem a legitimidade e os śramaṇas a radicalidade, os tantras fornecem ao Śaiva Siddhānta sua dimensão operativa.


O corpus Śaiva Āgama (शैव आगम, śaiva āgama, "tradições reveladas de Śiva") constitui a base textual do sistema, e apresenta características centrais:


  • ênfase em rituais iniciáticos (dīkṣā, दीक्षा);

  • culto à imagem (mūrti pūjā, मूर्ति पूजा) como mediação da presença divina;

  • integração entre práticas externas (mantras, yantras, pūjās) e internas (meditação, concentração, yoga).


A doutrina fundamental do Śaiva Siddhānta afirma a distinção entre três princípios eternos:


  1. Pati (पति, pati, "Senhor") – Śiva, o absoluto, transcendente;

  2. Paśu (पशु, paśu, "criatura") – as almas individuais, limitadas;

  3. Pāśa (पाश, pāśa, "laço") – os vínculos da ignorância, do karma e da materialidade.


A libertação (mokṣa) consiste na destruição dos vínculos (pāśa), pela graça de Śiva (śiva-anugraha, शिवअनुग्रह), permitindo ao indivíduo reconhecer-se como pura consciência e permanecer na bem-aventurança do Senhor.


O Śaiva Siddhānta, assim, sistematiza a espiritualidade śaiva em moldes tântricos, mas buscando sempre a legitimação na herança védica e na linguagem assimilada dos śramaṇas.


Conclusão

O Śaiva Siddhānta não deve ser entendido como mero prolongamento dos Vedas, nem como simples reação ao budismo e ao jainismo, tampouco como apenas mais uma escola tântrica. Ele é, antes, o resultado de um processo complexo de interação tripla:


  • afirmação da ortodoxia védica,

  • assimilação dos ideais śramaṇas,

  • sistematização tântrica.


Este tripé dá ao Śaiva Siddhānta sua força e sua durabilidade: trata-se de uma síntese capaz de dialogar com as tradições mais antigas e, ao mesmo tempo, responder às transformações religiosas da Índia medieval.


Ao colocar Śiva como o Pati absoluto, o Śaiva Siddhānta articula uma visão de mundo em que a salvação não é apenas o resultado do esforço humano (śrama, श्रम), mas da conjunção entre prática, devoção e graça divina.


É nesse equilíbrio que se revela a singularidade dessa escola: fiel aos Vedas, permeável aos śramaṇas, estruturada pelos tantras.


Bibliografia


  • Alexis Sanderson. Śaivism and the Tantric Traditions. In: S. Sutherland et al. (eds.), The World's Religions. Routledge, 1988.

  • Dominic Goodall. The Parākhyatantra: A Scripture of the Śaiva Siddhānta. Pondicherry: Institut Français de Pondichéry, 2004.

  • Gavin Flood. An Introduction to Hinduism. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

  • David Lorenzen. The Kāpālikas and Kālāmukhas: Two Lost Śaivite Sects. Delhi: Motilal Banarsidass, 1991.

  • Alexis Sanderson. History through Textual Criticism in the Study of Śaivism, the Pañcarātra, and the Buddhist Yoginītantras. In: Les Sources et le Temps, 2001.

  • Gavin Flood & Charles Martin. The Tantric Body: The Secret Tradition of Hindu Religion. London: I.B. Tauris, 2006.

 
 
 

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