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Os Tantra no Contexto dos Vedas e dos Śramaṇas (Parte 04): Os Kālamukha (कालमुख).

  • Foto do escritor: INatha
    INatha
  • 27 de ago.
  • 3 min de leitura

Atualizado: 29 de ago.


Os Kālamukha (कालमुख) no Contexto dos Vedas, Śramaṇas e Tantras


Introdução

Entre as correntes mais enigmáticas do Śaivismo medieval encontram-se os Kālamukha (कालमुख, kālamukha, “rosto negro” ou “face da morte”). Frequentemente associados a práticas ascéticas extremas e rituais de caráter tântrico, eles aparecem na historiografia indiana como herdeiros de uma longa tradição que atravessa os Vedas (वेद, veda, “conhecimento”), o universo contestatório dos Śramaṇa (श्रवण, śramaṇa, “asceta errante”) e as escolas esotéricas ligadas ao Tantra (तन्त्र, tantra, “tecido, estrutura”).


A análise dos Kālamukha exige compreender o pano de fundo em que surgem: um ambiente plural de interações entre bramanismo, correntes renunciantes e o desenvolvimento de formas radicais de culto a Śiva (शिव, Śiva, “benéfico, auspicioso”), que os textos descrevem como tanto marginais quanto indispensáveis na formação do Śaivismo.


Os Kālamukha e a Herança Védica

Embora muitas vezes considerados antibrahmânicos, os Kālamukha não podem ser desvinculados da herança védica. O uso de mantras e a preservação de rituais de fogo ainda estavam presentes em seu repertório, ainda que ressignificados dentro de um horizonte śaiva.


O termo Kālamukha (कालमुख) sugere uma simbologia ligada à morte (kāla, “tempo, morte”) e à face escura da realidade (mukha, “rosto, boca”).


A associação com o tempo devorador e com o aspecto destrutivo de Śiva mostra um vínculo com os hinos védicos dirigidos a Rudra (रुद्र, Rudra, “o terrível”), figura que encarna a dimensão feroz da divindade e que, no período pós-védico, se funde com Śiva.


Se, nos Vedas, Rudra é apaziguado por meio de oferendas para afastar doenças e destruição, nos Kālamukha a ênfase recai sobre acolher essa dimensão sombria como fonte de poder espiritual.


Relação com os Śramaṇa

Os Kālamukha, assim como outros grupos śaiva radicais, dialogaram profundamente com a tradição śramaṇica. Os monges budistas e jainas, assim como ascetas ājīvikas, compartilhavam uma crítica ao ritualismo védico e buscavam vias de liberação (mokṣa, मोक्ष).


Práticas comuns incluíam:

  • Austeridades corporais extremas (tapas, तपस्);

  • Vidas errantes sem lares fixos;

  • Uso de cinzas cremadas (bhasman, भस्मन्) no corpo como expressão da transitoriedade;

  • Meditação em lugares funerários (śmaśāna, श्मशान, “crematório”), onde a impermanência da existência se manifesta em sua radicalidade.


Assim, os Kālamukha mantêm uma ponte entre o universo védico e as correntes śramaṇicas, ocupando um lugar de intersecção que mostra tanto crítica quanto assimilação.


Inserção no Universo Tântrico

O Tantra (तन्त्र) foi talvez o campo em que os Kālamukha mais se projetaram. Relatos medievais sugerem que adotavam práticas rituais consideradas transgressivas:


  • Rituais noturnos em cemitérios;

  • Ingestão ritual de substâncias impuras, como vinho ou carne;

  • Uso do crânio humano (kapāla, कपाल) como tigela ritual;

  • Culto a Bhairava (भैरव, Bhairava, “o Terrível”), forma aterradora de Śiva ligada à dissolução.


Essas práticas não devem ser vistas apenas como perversões, mas como estratégias de inversão simbólica: ao atravessar os limites da pureza e da impureza, os Kālamukha buscavam transcender as dicotomias do mundo social e religioso.


O “rosto negro” simboliza tanto a dissolução das identidades convencionais quanto a fusão com a dimensão última do tempo e da morte — aspectos de Śiva como Mahākāla (महाकाल, “O Grande Tempo”).


Diferença em Relação a Outros Grupos Śaiva

É comum que os Kālamukha sejam confundidos com os Kāpālika (कापालिक, kāpālika, “os que portam crânios”), devido às semelhanças de práticas tântricas. No entanto, as fontes indicam que os Kālamukha mantinham também centros monásticos organizados, como os de Karnataka, e tinham certo grau de institucionalização, ao contrário dos Kāpālika, que eram essencialmente errantes e marginais.


Alguns estudiosos apontam que os Kālamukha atuaram como precursores do Liṅgāyat (लिङ्गायत) ou Vīraśaiva (वीरशैव) movimento, que posteriormente se tornou uma das mais importantes tradições śaivas do sul da Índia.


Conclusão

Os Kālamukha representam um elo fundamental na história do Śaivismo: um grupo que herda a simbologia de Rudra-Śiva dos Vedas, incorpora a crítica existencial dos Śramaṇa e se projeta no horizonte tântrico como força transformadora.


Sua imagem de “rosto negro” não é apenas literal ou ritual, mas um emblema filosófico: aceitar o tempo, a morte e a transgressão como caminhos de libertação.


Se sua presença parece marginal nos registros, sua influência foi profunda, pois pavimentou a transição entre formas ascéticas radicais e movimentos institucionalizados do Śaivismo medieval.


Bibliografia


  • Lorenzen, D. N. The Kāpālikas and Kālāmukhas: Two Lost Śaivite Sects. Delhi: Motilal Banarsidass, 1972.

  • Sanderson, Alexis. “Śaivism and the Tantric Traditions.” In: The World’s Religions, edited by S. Sutherland et al. London: Routledge, 1988.

  • Flood, Gavin. An Introduction to Hinduism. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.

  • Bisschop, Peter. Early Śaivism and the Skandapurāṇa: Sects and Centres. Leiden: Brill, 2006.

  • White, David Gordon. Kiss of the Yoginī: “Tantric Sex” in its South Asian Contexts. Chicago: University of Chicago Press, 2003.

 
 
 

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