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Mauna (मौन): etimologia, usos no sanātana dharma, desenvolvimentos tântricos e lugar na tradição Nātha — com nota sobre maunārambha no contexto do “Ekādaśa Krama”

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    INatha
  • 13 de ago.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 14 de ago.


1) Introdução e escopo

Este ensaio apresenta um estudo abrangente do termo mauna (मौन, mauna), com foco na sua etimologia, nas suas funções normativas dentro do sanātana dharma, nos seus empregos tântricos, em particular aquilo que é atribuível ao universo siddha‑śaiva conhecido por Siddha‑Siddhānta (sem prejuízo da discussão terminológica) e à tradição Nātha, e termina com uma bibliografia comentada. Incluem‑se citações em devanágari, transliteração IAST e traduções para o português do Brasil.

Uma breve nota terminológica sobre maunārambha (मौनारम्भ / maunārambha) no fim explicita seu valor morfológico e o estatuto de uso contemporâneo em programas pedagógicos (“onze passos”, ekādaśa‑krama), sem pretender atribuir historicidade a corpora em que o composto não é atestado.


2) Etimologia e campo semântico

Mauna (मौन) é, nos léxicos clássicos, “silêncio; taciturnidade; (por extensão) o voto de silêncio (mauna‑vrata)” e, etimologicamente, “estado ou qualidade de muni (मुनि, ‘sábio, asceta, ‘o silencioso’)”. Assim, mauna designa tanto a abstenção de fala quanto um dispositivo ascético que estrutura a disciplina da linguagem e do pensamento. O Monier‑Williams registra esses sentidos e a derivação “(fr. muni)”, sinalizando o vínculo entre silêncio disciplinado e figura do sábio (muni).

Do ponto de vista morfológico, o composto mauna‑vrata (मौनव्रत) — literalmente “voto (vrata) de silêncio” — aparece na literatura normativa e devocional como forma específica de ascese verbal e mental, seja temporária, seja estável (ver §4–5).


3) Mauna no sanātana dharma: normatividade, ética da fala e ascese mental

Nos Śāstras e na exegese clássica, mauna é tratado não apenas como abstenção fonética, mas como regra ética da linguagem, integrando o espectro de tapas (austeridades). O locus clássico é Bhagavadgītā 17.16, que define o tapas mental:

Devanágari:मनःप्रसादः सौम्यत्वं मौनमात्मविनिग्रहः।भावसंशुद्धिरित्येतत्तपो मानसमुच्यते॥ 17.16॥IAST:manaḥ‑prasādaḥ saumyatvaṃ maunam ātma‑vinigrahaḥ |bhāva‑saṃśuddhir ity etat tapo mānasam ucyate || 17.16 ||PT‑BR (literal): “Serenidade da mente, gentileza, silêncio (mauna), autodisciplina; pureza das disposições — isto se denomina a austeridade mental.”

As edições do Gita Supersite (IIT‑Kanpur) trazem o śloka com comentários (Śaṅkara, Sivananda, entre outros). Śaṅkara nota que mauna, como reticência e contenção da fala, repousa na contenção da mente (manas), chegando a glossar mauna como “pensar no Self (ātman) / atitude de meditante” — o que alarga o escopo semântico de “silêncio” do fonético ao contemplativo.

A tradição vedântica já sugeria o limite da linguagem diante do Absoluto (Brahman), como no célebre Taittirīya‑upaniṣad 2.9: yato vāco nivartante aprāpya manasā saha (“de onde as palavras retornam, não o tendo alcançado, junto com a mente”). Neste horizonte, mauna não é mero “calar‑se”, mas método apofático e higiene cognitiva.


4) Maunavrata (voto de silêncio): regra ascética, liturgia e segredo

Em registros prescritivos e devocionais, maunavrata organiza ciclos de prática, retiros e rituais, e ainda aparece associado a exigências de segredo (rahasya) de iniciação. Traduções clássicas do Mahanirvāṇa‑tantra (séc. XIX–XX) mencionam explicitamente “observando o voto de silêncio (mauna‑vrata)” em contextos rituais e de iniciação, ilustrando o estatuto tântrico do silêncio como guarda do mantra e proteção do adhikāra (qualificação do praticante). Embora traduções antigas necessitem controle filológico, elas preservam a terminologia ritual e o vínculo entre mauna e resguardo do sagrado.

Nos manuais de vida ritual (p. ex., votos durante upavāsa, vigílias, dīkṣā), mauna atua como regra de fala (vāg‑niyama) e suporte da concentração (dhāraṇā), servindo de ponte entre tapas físico, verbal e mental — estrutura já intuída na Gītā 17.14–17.16.


5) Mauna no universo tântrico: pedagogia do segredo e “doutrina do gesto”

A performatividade do silêncio é uma marca tântrica antiga: silêncio como selo (mudrā) do ensinamento, como técnica de resguardo e como meio de transmissão (upadeśa) não‑verbal. Iconograficamente, a figura de Dakṣiṇāmūrti — Śiva como “mestre virado ao sul” — “ensina o Parabrahman por um comentário silencioso”:

Dakṣiṇāmūrti‑stotram (dhyāna)IAST: mauna‑vyākhyā‑prakaṭita‑para‑brahma‑tattvaṃ yuvānaṃ …PT‑BR (literal): “(Aquele) que **manifesta o princípio do Parabrahman por meio de uma exposição silenciosa (mauna‑vyākhyā)… [Dakṣiṇāmūrti]”

Edições devocionais e didáticas preservam a leitura mauna‑vyākhyā e sua exegese pedagógica (“ensino pelo silêncio”, jñāna‑mudrā na mão do mestre).

Em chave tântrica, mauna funciona como: (i) sombra protetiva do segredo (rahasya) — silenciar para não dispersar śakti do mantra; (ii) condição de receptividade na dīkṣā; (iii) “linguagem do corpo” (mudrās) que suspende a fala para acelerar a apreensão não dual.


6) Siddha‑Siddhānta e tradição Nātha: silêncio, disciplina e transmissão

No universo Nātha, o silêncio é menos uma “técnica isolada” e mais um eixo pedagógico dentro do programa de autodisciplina (niyama), recolhimento e secreto. O clássico estudo de G. W. Briggs (1938) sobre Gorakhnāth e os Kanphatā Yogīs — ainda hoje referência histórica, apesar das limitações do seu tempo — documenta amplamente a ênfase Nātha em ascese, reserva disciplinar, economia da fala e transmissão seletiva de doutrina e mantras. A obra também preserva textos Nātha (p. ex., o Gorakṣaśataka) e descreve práticas de guarda (guhya) e silêncio na formação do asceta de orelhas perfuradas (kan‑phatā).

Em termos de doutrina, o Siddha‑Siddhānta Paddhati (atribuído a Gorakṣanātha) sistematiza a ontologia e o caminho do siddha. Mesmo quando o termo mauna não aparece em mancheia, sua lógica atravessa o regime de interiorização (antar‑yāga, manas‑pūjā) e o ideal do “governo” dos órgãos de ação e da fala como condição de rāja‑yoga e samādhi. A literatura Nātha de Hatha‑Yoga (p. ex., Gorakṣaśataka) — tal como revisitada pela pesquisa moderna — privilegia bandhas, mudrās e prāṇāyāma, com pressuposto de silêncio funcional (estalão ético‑meditativo) que torna praticável a reclusão do sopro, da fala e da mente.

Observação filológica: no ambiente Nātha, o vocabulário de silêncio transborda os termos explícitos (mauna, mauna‑vrata) e reaparece como “modos de reserva”: upadeśa sigiloso, rahasya de mantra, e o gesto (mudrā) que substitui a fala (cf. a leitura do Dakṣiṇāmūrti em §5).


7) Filosofia e prática: do “calar” fonético ao mauna contemplativo

Alargando a leitura de Gītā 17.16, os comentadores equiparam mauna ao mestreio do mental (ātma‑vinigrahaḥ), isto é, o silêncio como método cognitivo e ético:

  • Dimensão ética (vāṅ‑niyama): refrear a fala injuriosa, inútil, prolixa; cultivar reticência informada por benevolência (saumyatvam).

  • Dimensão ascética (tapas): votos temporários de silêncio para depurar prāṇa e estabilizar atenção (suporte a prāṇāyāma e dhyāna).

  • Dimensão gnosiológica (mauna‑vyākhyā): quando o ensino é menos proposicional e mais presencial — o “silêncio explicativo” (vyākhyā) de Dakṣiṇāmūrti.

Assim, mauna migra do fenômeno acústico para o ato intencional (bhāva‑saṃśuddhiḥ, “purificação dos motivos”), encerrando uma pedagogia da interioridade.


8) Nota sobre maunārambha (मौनारम्भ / maunārambha) e “Ekādaśa‑krama”

Do ponto de vista morfossintático, maunārambha é um tatpuruṣa transparente: mauna + ārambha (“começo, início, empreendimento”), com o sentido composicional de “início por/na prática de mauna”, “arranque silencioso”, ou “fase inicial de silêncio”.


  • Atestação: uma varredura bibliográfica em repertórios públicos e dicionários digitais não mostra o composto como termo canônico em corpora clássicos amplamente acessíveis. Isto não invalida usos contemporâneos/lineares (p. ex., currículos esotéricos que organizam a prática em “onze passos”, ekādaśa‑krama, nos quais maunārambha designa a primeira etapa). É, porém, filologicamente prudente tratá‑lo como termo programático moderno, com valor descritivo‑pedagógico mais do que técnico‑canônico.

  • Adequação semântica: plenamente congruente com Gītā 17.16 e com o ethos tântrico de reserva e concentração: começar pelo silêncio disciplinado é coerente com o método Nātha de interiorização.


Conclusão provisória: maunārambha é um composto válido e claramente interpretável; sua historicidade técnica dependerá de documentação futura em manuscritos/ed. críticas. Enquanto rótulo de primeira etapa, descreve bem um gesto inaugural: instalar o silêncio para permitir a arquitetura subsequente da prática.


9) Diretrizes práticas (síntese hermenêutica)

  1. Delimitar o escopo: mauna não é apenas “não falar”; é governança da fala e higiene da intenção (bhāva‑saṃśuddhi).

  2. Vincular a prāṇica: votos de silêncio integram rotinas de prāṇāyāma — silêncio externo sustenta estabilidade interna.

  3. Resguardar o sagrado: em ritos tântricos, o maunavrata protege mantra e grau iniciático (adhikāra).

  4. Silêncio como ensino: a mauna‑vyākhyā (Dakṣiṇāmūrti) recorda que presença e gesto (mudrā) podem superar a linguagem conceitual.


10) Conclusão

Mauna concentra uma teoria ético‑ascética da linguagem e uma técnica de interiorização que atravessa Vedānta, Tantra e a tradição Nātha. Como regra da fala (vāṅ‑niyama), opera o tapas mental; como voto (maunavrata), organiza ciclos de prática; como sinal pedagógico (mauna‑vyākhyā), corporifica a transmissão do conhecimento. A noção de maunārambha — ainda que não atestada como termo técnico clássico — sintetiza um princípio metodológico robusto: o começo silencioso que preserva energia, ordena a mente e torna efetivo o caminho subsequente, qualquer que seja o krama adotado.


11) Apêndice — Passagens citadas (texto‑fonte)


11.1 Bhagavad‑gītā 17.16

Devanágari: मनःप्रसादः सौम्यत्वं मौनमात्मविनिग्रहः। भावसंशुद्धिरित्येतत्तपो मानसमुच्यते॥ 17.16॥IAST: manaḥ‑prasādaḥ saumyatvaṃ maunam ātma‑vinigrahaḥ | bhāva‑saṃśuddhir ity etat tapo mānasam ucyate ||Tradução PT‑BR (literal): “Serenidade da mente, gentileza, silêncio, domínio de si, pureza de disposição — isso é chamado de austeridade mental.”


11.2 Dakṣiṇāmūrti‑stotram (dhyāna, v. 1 – incipit)

IAST: mauna‑vyākhyā‑prakaṭita‑para‑brahma‑tattvaṃ yuvānaṃ …PT‑BR (literal): “(Aquele) que manifesta o princípio do Parabrahman por meio de uma exposição silenciosa…”


12) Bibliografia comentada (seleção essencial para aprofundamento)

Léxicos e recursos filológicos

  • Monier‑Williams, Monier. A Sanskrit‑English Dictionary. (ed. digital, Univ. de Colônia / Sanskrit Library).


    — Entrada mauna: “silêncio; voto de silêncio; (de muni) estado/qualidade do muni”. Recurso padrão para campo semântico.


Fontes primárias e edições/traduções

  • Bhagavad‑gītā 17.16 — texto, devanágari, IAST e comentários (Śaṅkara, Sivananda, etc.) no Gita Supersite (IIT‑Kanpur).

  • Dakṣiṇāmūrti‑stotramdhyāna com mauna‑vyākhyā, edições devocionais (Vaidika Vignanam; GreenMesg). Útil para a noção de ensino por silêncio.

  • Mahanirvāṇa‑tantra — trad. Arthur Avalon/Woodroffe. Menções explícitas a mauna‑vrata em contexto ritual e iniciático. (Usar com cautela crítica; consultar o sânscrito quando possível.)

  • Gorakṣaśataka (atrib. a Gorakṣa). Para o ethos Nātha de interiorização prânica e disciplina; ver síntese recente e referências críticas.


Estudos secundários

  • Briggs, G. W. (1938). Gorakhnath and the Kanphata Yogis. Clássico histórico sobre a ordem Nātha (com transcrições e documentação etnográfica). Acesso livre em repositórios.

  • Mallinson, James & Singleton, Mark (2017). Roots of Yoga. London: Penguin Classics. — Antologia com traduções críticas de passagens relevantes do haṭhayoga e discussões sobre ascese, prāṇāyāma, mudrā, silêncio e interiorização (útil para contextualizar mauna no largo espectro iogue).

  • Dyczkowski, M. S. G. Estudos sobre Śaivismo tântrico (Krama/Kula). — Para a pedagogia do segredo e o lugar do silêncio no ensino e na iniciação.

  • Bouy, Christian. Les Naths Yogis et les Upanishads du Yoga. — Sobre corpus Nātha e intertextualidade iogue.

  • White, David Gordon (ed.). Yoga in Practice. — Ensaios sobre pedagogias de transmissão, sigilo e práticas corporais.


Observação metodológica:

  1. as traduções antigas (Woodroffe/Avalon) são históricas, mas pedem verificação filológica com o sânscrito;

  2. para usos normativos em currículos atuais (p. ex., maunārambha em “onze etapas”), recomenda‑se documentar fontes internas da linhagem e versões críticas se houver;

  3. para terminologia Nātha, conjugar fontes primárias (SSP, Gorakṣaśataka, HYP, Gheraṇḍa‑saṃhitā) com pesquisa moderna (Mallinson et al.).


Referências web citadas (acesso e verificação)

  • Gita Supersite (IIT‑Kanpur), 17.16 (texto e comentários).

  • Monier‑Williams — Cologne Digital Sanskrit Lexicon (portal/entrada).

  • Dakṣiṇāmūrti‑stotram (IAST e explicações devocionais).

  • Mahanirvāṇa‑tantra (traduções históricas em Sacred‑Texts e HolyBooks; menção a mauna‑vrata).

  • Briggs (1938) — edições digitais / repositórios (IGNCA / Archive.org).

  • Gorakṣaśataka — síntese e referências.


13) Fecho

Ao começar pelo silêncio, o praticante instala as condições de inteligibilidade do próprio caminho. Como norma (Gītā 17.16), selo tântrico (mauna‑vrata), didática (mauna‑vyākhyā) e ethos Nātha de interiorização, mauna articula uma epistemologia prática da tradição indiana: calar para compreender.

 
 
 

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