Cārvāka (चर्वाक) e o Movimento Śramaṇa (श्रवण): Materialismo e Ceticismo na Índia Antiga.
- INatha

- 27 de ago.
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Introdução
No vasto panorama do pensamento indiano, o movimento Śramaṇa (श्रवण, śramaṇa – “aquele que se esforça, asceta”) representou uma corrente paralela e, muitas vezes, crítica à tradição Védica (वैदिक, vaidika – “relativa aos Vedas”). Dentro deste conjunto plural de tradições – que incluiu jainistas, budistas, ajīvikas e ajñānikas – destacou-se a escola Cārvāka (चर्वाक, cārvāka), também conhecida como Lokāyata (लोकायत, lokāyata – “aquilo que está difundido entre o povo”).
O Cārvāka foi uma escola de filosofia materialista, hedonista e cética que rejeitou a autoridade dos Vedas, a crença na vida após a morte, no karma e na reencarnação, propondo uma visão radicalmente voltada para o aqui e agora da experiência sensível.
No contexto dos Śramaṇas, essa tradição funcionou como contraponto crítico, questionando a validade de práticas ascéticas extremas, de dogmas religiosos e da especulação metafísica.
O Contexto Śramaṇa
O movimento Śramaṇa (श्रवण) floresceu entre os séculos VI a.C. e II d.C., durante um período de intensa efervescência espiritual e filosófica na Índia. Ao lado dos brāhmaṇas (ब्राह्मण, brāhmaṇa – sacerdotes védicos), que defendiam os rituais sacrificiais e a ordem social do varṇāśrama (वर्णाश्रम, varṇāśrama – sistema de castas e estágios de vida), os śramaṇas representaram uma alternativa baseada na renúncia, no ascetismo e na busca direta pela liberação espiritual (mokṣa, मोक्ष).
Enquanto escolas como o Jainismo (जैन धर्म, jaina dharma) e o Budismo (बुद्ध धर्म, buddha dharma) defendiam caminhos éticos e meditativos para a libertação, os Cārvākas se distinguiram por sua recusa em aceitar qualquer forma de transcendência. Seu foco estava na vida terrena, nos prazeres imediatos e no conhecimento obtido pelos sentidos.
Princípios da Filosofia Cārvāka (चर्वाक दर्शन, cārvāka darśana)
1. Pramāṇa (प्रमाण – fontes de conhecimento)
A epistemologia dos Cārvākas restringia o conhecimento válido apenas à percepção direta (प्रत्यक्ष, pratyakṣa). Eles rejeitavam as outras formas clássicas de validação de conhecimento, como anumāna (अनुमान, inferência) e śabda (शब्द, testemunho verbal ou escritural), argumentando que estas poderiam levar a erros e ilusões.
2. Negação do Ātman (आत्मन् – alma)
Os Cārvākas negavam a existência de uma alma permanente. Para eles, a consciência era um produto do corpo material, em especial da interação entre os elementos físicos (pṛthvī, āpas, tejas, vāyu – terra, água, fogo e ar). Quando o corpo morria, a consciência cessava.
3. Rejeição do Karma (कर्म) e da Reencarnação (पुनर्जन्म, punarjanma)
A escola recusava a ideia de que ações em uma vida pudessem determinar destinos futuros. Considerava o karma uma invenção dos sacerdotes para manter poder sobre as massas.
4. Hedonismo Moderado
Embora muitas vezes caricaturados como meros defensores da indulgência, os Cārvākas valorizavam o prazer (sukha, सुख) como o objetivo legítimo da vida. Sua máxima célebre era:
"yāvaj jīvet sukhaṃ jīvet ṛṇaṃ kṛtvā ghṛtaṃ pibet"“Enquanto viver, viva feliz; mesmo contraindo dívidas, beba ghee (manteiga clarificada).”
Essa frase resume o espírito do movimento: aproveitar a vida terrena, já que não existe outra.
Cārvāka como Crítica Social e Religiosa
No contexto social da Índia antiga, os Cārvākas foram uma voz profundamente contestatória:
Contra os Brāhmaṇas (ब्राह्मण): acusavam os sacerdotes de inventarem rituais complicados para explorar o povo.
Contra os Ascetas (Śramaṇas extremados): ironizavam os que buscavam a libertação pela mortificação do corpo, dizendo que nada sobreviveria após a morte.
Contra a Metafísica: ridicularizavam conceitos como mokṣa, ātman e brahman, considerando-os especulações sem base empírica.
Assim, dentro do movimento Śramaṇa, os Cārvākas cumpriram um papel de “céticos internos”, funcionando como provocadores que obrigaram outras tradições a refinar seus argumentos e responder ao desafio do materialismo.
Legado e Influência
Apesar de sua relevância, nenhum texto original da escola Cārvāka sobreviveu. O que sabemos de sua filosofia provém principalmente das refutações feitas por seus opositores – jainas, budistas e vedantinos. Isso cria um desafio: a imagem que temos dos Cārvākas pode ser distorcida por caricaturas hostis.
Ainda assim, sua presença é crucial para entendermos a diversidade intelectual da Índia antiga. A escola antecipou discussões modernas sobre empirismo, materialismo e ceticismo, tornando-se uma das primeiras tradições declaradamente ateístas da história.
Conclusão
O Cārvāka (चर्वाक), como parte do movimento Śramaṇa (श्रवण), representa o polo radical do pensamento indiano, onde a recusa da transcendência se converteu em uma filosofia do aqui e agora. Sua ênfase na percepção direta como único meio de conhecimento, sua crítica às estruturas religiosas e sociais, e sua defesa da vida prazerosa, mesmo sob risco de caricatura, marcaram um contraponto necessário às correntes espiritualistas dominantes.
No diálogo entre os śramaṇas, os Cārvākas foram a lembrança incômoda de que, em meio à busca pela libertação, sempre existirá quem insista em perguntar: “E se não houver nada além desta vida?”
Bibliografia
Chattopadhyaya, D. P. Lokāyata: A Study in Ancient Indian Materialism. New Delhi: People’s Publishing House, 1959.
Bhattacharya, R. Studies on the Cārvāka/Lokāyata. Anthem Press, 2011.
Basham, A. L. The Ajivikas: A Short History of a Nearly Forgotten Indian Sect. London: Luzac, 1951.
King, Richard. Indian Philosophy: An Introduction to Hindu and Buddhist Thought. Edinburgh University Press, 1999.
Radhakrishnan, S. & Moore, C. A. A Sourcebook in Indian Philosophy. Princeton University Press, 1957.


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