Candra e Soma: Apanhado Histórico, Filosófico e Mitológico:
- INatha

- 27 de ago.
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1. Introdução
O universo védico-tântrico concebe o cosmos como uma rede viva de deidades, forças e símbolos que encarnam ritmos naturais e princípios metafísicos. Entre eles, destacam-se Candra (a Lua) e Soma (a substância, o deus e o princípio do néctar).
Apesar de frequentemente confundidos ou tratados como equivalentes, cada termo carrega nuances próprias, revelando camadas distintas da tradição indiana. Este ensaio busca rastrear as origens, diferenças e conexões entre ambos, articulando sua presença nos Vedas, nos Purāṇas, na filosofia, nos rituais e em leituras contemporâneas.
2. Candra: a Lua como corpo celeste e divindade
2.1 Etimologia e simbolismo
Candra (चन्द्र) deriva da raiz cand, “brilhar”, “resplandecer”.
Designa tanto o astro físico (Lua) quanto a divindade lunar.
É associado ao frescor, à beleza suave, ao brilho noturno e à natureza reflexiva, contrastando com o Sol (Sūrya).
2.2 Candra nos Vedas
Nos hinos do Ṛgveda, Candra aparece mais como um astro do que como uma deidade autônoma.
Seu brilho é descrito como um reflexo do fogo cósmico, reforçando a ideia de complementaridade ao Sol.
2.3 Desenvolvimento purânico
No Mahābhārata e nos Purāṇas, Candra surge como uma deidade com genealogia própria: filho de Atri e Anasūyā.
É descrito como Soma, mas também como esposo das 27 nakṣatras (filhas de Dakṣa), simbolizando o vínculo lunar com o zodíaco sideral.
Mitologicamente, Candra carrega tanto o aspecto benevolente quanto o transgressor (sua paixão pela esposa Rohiṇī acima das outras nakṣatras gerou a maldição de Dakṣa, condenando-o ao ciclo de crescimento e decrescimento).
2.4 Filosofia e astrologia
Em Jyotiṣa (astrologia védica), Candra é o graha lunar, regente da mente (manas), da memória e das emoções.
Sua natureza mutável reflete os estados flutuantes da psique.
3. Soma: o néctar, o rito, o deus
3.1 Etimologia e polissemia
Soma (सोम) provém da raiz su, “extrair, prensar”.
Refere-se a:
A planta cujo suco era extraído.
O néctar produzido no rito.
O deus Soma, que personifica esse princípio.
3.2 Soma nos Vedas
Soma é um dos deuses mais celebrados do Ṛgveda.
É o suco sacrificial oferecido aos deuses, especialmente a Indra, que dele obtém força para derrotar Vṛtra.
É também deus imortalizante, pois seu consumo confere vigor, clarividência e êxtase místico.
3.3 Soma como princípio cósmico
Soma é descrito como o “rei das plantas”, “senhor da inspiração” e “amigo dos deuses”.
Associado à lua cheia, ele se torna o “cálice” que cresce e mingua, distribuindo o néctar às divindades.
Aqui surge uma interseção entre Soma e Candra: o astro lunar como recipiente do soma.
3.4 Soma no contexto filosófico
Nas Upaniṣads, Soma se torna símbolo do rasa (essência vital, sabor) que permeia o cosmos.
No Ayurveda e no Tantra, Soma é associado à seiva, ao frescor, à nutrição, em contraste ao calor ardente de Agni.
4. Diferenças entre Candra e Soma
Aspecto | Candra | Soma |
Natureza | Astro, deidade lunar | Planta, néctar, deus |
Enfoque | Astronômico, astrológico, mitológico | Ritual, sacrificial, místico |
Simbolismo | Mente, emoções, ciclos, reflexão | Essência, êxtase, imortalidade |
Origem textual | Mais forte nos Purāṇas e Jyotiṣa | Central no Ṛgveda |
Função | Refletir, regular, nutrir a mente | Energizar, imortalizar, inspirar |
Iconografia | Lua crescente na testa de Śiva | Cálice, seiva, fluxo vital |
5. Conexões entre Candra e Soma
Apesar das distinções, a tradição progressivamente identificou Candra e Soma:
Cosmologicamente, a Lua cheia é vista como o recipiente do Soma, cujo néctar vai sendo distribuído aos deuses conforme mingua.
Astrologicamente, a Lua rege o frescor, a fertilidade e a seiva vital, aspectos que ecoam a função de Soma.
Iconograficamente, Śiva porta a Lua em sua fronte (Candraśekhara) como sinal do controle sobre o Soma e o tempo.
No Tantra, Candra e Soma convergem no bindu do sahasrāra, o “néctar da imortalidade” que desce pelo corpo sutil.
6. Outras camadas de interpretação
6.1 Relação com Śiva
Śiva bebeu o veneno do oceano cósmico e, ao portar Candra na cabeça, tornou-se guardião do fluxo de Soma, equilibrando morte e imortalidade.
6.2 Relação com Viṣṇu
Viṣṇu é chamado Soma-pati (“senhor do soma”), pois preserva a ordem cósmica nutrida por esse néctar.
6.3 Relação com o feminino
Soma é associado ao śakti nutritivo, enquanto Candra rege a fertilidade e os ciclos femininos.
Essa dimensão aproxima-os do simbolismo da deusa e do aspecto lunar do tempo.
7. Leituras contemporâneas
No yoga moderno, “Chandra” inspira práticas de suavidade, introspecção e equilíbrio.
No Ayurveda, “Soma” simboliza os princípios de frescor, lubrificação e regeneração, em contraste com Agni (fogo digestivo).
Na psicologia simbólica, Candra e Soma podem ser lidos como metáforas da psique líquida, emocional, nutridora, em contraste com a consciência solar-volitiva.
8. Conclusão
Candra e Soma não são termos intercambiáveis, mas camadas complementares de uma mesma constelação simbólica. Enquanto Candra personifica o astro lunar e a mente humana em sua mutabilidade, Soma encarna a essência vital, o néctar e a experiência de transcendência. No encontro entre ambos se encontra uma das chaves mais profundas do pensamento védico e tântrico: o tempo cíclico, a nutrição cósmica e a possibilidade de imortalidade.


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