A Lua como Cálice de Soma (चन्द्र, Candra) e os Rituais de Pūrṇimā, Amāvasyā e Śivarātri.
- INatha

- 27 de ago.
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Introdução
Na tradição védica (वेद, veda, “conhecimento”) e tântrica (तन्त्र, tantra, “estrutura ritual”), a Lua (चन्द्र, Candra) é frequentemente concebida como o cálice do Soma (सोम, Soma) — o elixir divino de imortalidade (amṛta, अमृत). A relação entre a Lua e o Soma é simbólica, ritual e psicológica: ela conecta o cosmo, os deuses (devas, देव, deva), os ancestrais (pitṛs, पितृ, pitṛ) e o corpo interior do yogin.
Este artigo analisa historicamente e filosoficamente a Lua como receptáculo do Soma, explorando seus rituais na Lua Cheia (Pūrṇimā), Lua Nova (Amāvasyā) e Śivarātri, articulando os aspectos védicos, purânicos e tântricos.
1. A Lua como Cálice de Soma
No Ṛgveda (ऋग्वेद, ṛgveda), a Lua está associada ao Soma em múltiplos hinos. A tradição descreve o orbe lunar como taça que contém o elixir imortal, continuamente bebido pelos deuses.
Fases lunares e o consumo do Soma
Kṛṣṇa pakṣa (कृष्ण पक्ष, quinzena minguante): os deuses bebem o Soma, e a Lua decresce.
Śukla pakṣa (शुक्ल पक्ष, quinzena crescente): a Lua é recarregada pelos sacrifícios, oferendas e mantras, tornando-se novamente plena para consumo.
Essa alternância representa a dialética cósmica entre sacrifício (यज्ञ, yajña) e graça (प्रसाद, prasāda).
Upaniṣads e a Lua como estação intermediária
Em textos como a Chāndogya Upaniṣad (छांदोग्य उपनिषद्, Chāndogya Upaniṣad), a Lua é mencionada como estação para a alma pós-morte: o caminho dos ancestrais (pitṛ-yāna, पितृ-यान) leva o espírito até a Lua, onde ele “bebe Soma” antes de renascer. Assim, o cálice lunar é alimento de deuses e almas humanas.
Iconografia Śaiva
Na tradição śaiva (शैव, Śaiva), o disco lunar aparece como crescente na cabeça de Śiva (शिव, Śiva), simbolizando controle e superação do ciclo de esvaziamento e preenchimento. Śiva não apenas bebe Soma, mas também se torna sua fonte — Soma-svāmin (सोमस्वामिन्).
2. Rituais da Lua Cheia, Lua Nova e Śivarātri
a) Lua Cheia (Pūrṇimā, पूर्णिमा)
Momento em que o “cálice está pleno de Soma”.
Paurṇamāsa iṣṭi (पूर्णमास इष्टि): oferendas para reabastecer a Lua e garantir fertilidade e prosperidade.
Em tradições devocionais, Pūrṇimā é auspiciosa para votos, jejuns e iniciações, como Guru Pūrṇimā e Rāsa Pūrṇimā.
b) Lua Nova (Amāvasyā, अमावस्या)
O cálice de Soma está esvaziado.
Darśa iṣṭi (दर्श इष्टि): ritos para restaurar o ciclo.
Noites dedicadas aos pitṛs (ancestrais); o esvaziamento simboliza a descida ao invisível.
c) Śivarātri (शिवरात्रि)
Celebrada na Kṛṣṇa pakṣa 14 (penúltimo dia da quinzena minguante) do mês de Phālguna (फाल्गुन, Mahāśivarātri).
Lua-cálice quase vazia de Soma; o yogin busca a fonte transcendente — Śiva.
Rituais noturnos: vigílias, recitação de mantras, libações sobre o liṅga (लिङ्ग, símbolo de Śiva).
Objetivo: reter no coração a gota eterna do Soma, independente da Lua física.
3. Filosofia e Mitologia Integradas
Ritmo cósmico e psicologia yogue
O cálice lunar é metáfora da mente (मनस, manas): enche-se de néctar (amṛta) e se esvazia no ciclo da experiência. O yogin aprende a transcender esse fluxo pela consciência do Sol (Sūrya, सूर्य) e da consciência suprema (Śiva).
Dualidade Soma–Agni
Agni (अग्नि, fogo, Sol) consome, Candra (चन्द्र, Lua) nutre.
A integração destes polos é essencial no Veda e no Tantra.
Tantra e Soma interior
Soma interno: néctar que escorre do bindu (बिंदु, ponto lunar) pelo suṣumṇā (सुषुम्णा, canal central de energia).
Prática de mudrās (मुद्रा, gestos ritualísticos), como khecarī mudrā (खेकरी मुद्रा), evita a dissipação do amṛta e mantém vitalidade.
O yogin bebe o Soma interior do próprio cálice craniano, assim como os deuses bebem o Soma cósmico da Lua.
4. Síntese
Aspecto | Lua Cheia (Pūrṇimā) | Lua Nova (Amāvasyā) | Śivarātri |
Estado do cálice | Pleno de Soma | Esvaziado | Quase vazio |
Rito principal | Paurṇamāsa iṣṭi, votos e jejuns | Darśa iṣṭi, homenagem aos pitṛs | Vigílias, mantras, libações sobre liṅga |
Significado | Celebração, fertilidade, comunhão | Nutrição dos ancestrais, introspecção | Transcendência da Lua, Soma interior |
Conclusão
A Lua como cálice de Soma é ponte simbólica entre cosmo e corpo, mito e rito, deuses e humanos. A Lua Cheia representa o ápice da abundância, a Lua Nova a conexão com os ancestrais e a introspecção, e Śivarātri o momento de transcendência da própria limitação, buscando o Soma eterno no coração de Śiva.
Bibliografia
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