A invocação a Ādinātha no Método INatha.
- INatha

- 24 de ago.
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Abertura
Na tradição espiritual da Índia, a invocação (आह्वान, āhvāna) é muito mais que um ornamento litúrgico: é o ato pelo qual o praticante estabelece contato direto com o princípio divino que deseja vivificar em si. Invocar não é apenas recitar palavras sagradas, mas abrir a consciência à presença do mestre eterno.
No Hinduísmo em geral, e nas correntes tântricas em particular, toda prática — seja mantra, pūjā ou dhyāna — se inicia e se encerra com um chamado, um reconhecimento de que o caminho humano só se cumpre pela descida da graça (अनुग्रह, anugraha).
É nesse horizonte que se compreende a invocação a Ādinātha (आदिनाथ), “O Senhor Primordial”, venerado tanto como o fundador mítico da linhagem Nātha, quanto como um princípio cósmico e iniciador universal. Ādinātha é Śiva em seu aspecto de mestre arquetípico: simultaneamente immanente na pulsação de Spanda (स्पन्द, vibração primordial) e transcendente, absorvido na Unificação suprema (अनुत्तर, anuttara).
Para o Método INatha, ele é a fonte de toda iniciação verdadeira, pois a auto-iniciação do praticante nada mais é do que a receptividade consciente à sua presença. Assim, Ādinātha é reconhecido como aquele que dentro de Spanda conduz à libertação, e fora de Spanda dissolve na Unidade.
A invocação que segue foi composta em sânscrito (संस्कृत, saṁskṛta) — a língua sagrada da Índia, cuja própria sonoridade é considerada portadora de śakti, energia espiritual. O uso do devanāgarī e da transliteração em IAST assegura a fidelidade fonética e a preservação da força vibratória dos mantras.
O sânscrito não é apenas um idioma erudito: é o vāgdevī (देवी वाक्), a “fala da deusa”, em que cada sílaba ecoa os princípios cósmicos.
Para o Método INatha, esta invocação é mais que um hino: é a coluna vertebral da prática, pois, repetida no início e no fim de cada sessão, estabelece o vínculo com a linhagem eterna, consagra o espaço de prática e conduz a mente, o coração e o ser do praticante à plena receptividade da Śaktipāta (शक्तिपात).
Assim, a invocação a Ādinātha é ao mesmo tempo fundamento devocional e ato iniciático. Pela sua recitação, cada prática do Método INatha se torna uma iniciação em si, em que o discípulo se entrega ao Mestre Primordial, e o Mestre Primordial desce como fluxo de graça, unificando mente, coração e ser no Silêncio Transcendental.
Invocação a Ādinātha (texto-base)
Devanāgarī
ॐ आदिनाथाय नमः ।अनन्तशक्तिपातप्रवाहिणे,शून्यतत्त्वस्वरूपाय,योगमार्गदीक्षाकर्त्रे,करुणारससिन्धवे,मम चित्तं शुद्धं कुरु,मम हृदयं तेजोमयं कुरु,मम आत्मानं स्वात्मन्येव लीनं कुरु ।ॐ आदिनाथाय नमः ॥
Nota ortográfica: em “प्रवाहिणे (pravāhiṇe)” a longa ā é importante: pravāha = “fluxo/curso”. (Algumas transcrições podem omitir a marca longa; aqui usamos a forma correta.)
IAST
oṁ ādināthāya namaḥ
ananta-śaktipāta-pravāhiṇe,
śūnya-tattva-svarūpāya,
yoga-mārga-dīkṣā-kartre,
karuṇā-rasa-sindhave,
mama cittaṁ śuddhaṁ kuru,
mama hṛdayaṁ tejo-mayaṁ kuru,
mama ātmānaṁ svātmany eva līnaṁ kuru
oṁ ādināthāya namaḥ
Tradução devocional
Om, reverência a Ādinātha!
A Ti, fluxo infinito da Graça;
cuja natureza é a essência do Vazio/Plenitude;
Iniciador no Caminho do Yoga;
Oceano do néctar da compaixão.
Torna pura a minha mente;
faz do meu coração um sol de esplendor;
e dissolve meu eu no Teu próprio Ser.
Om, reverência a Ādinātha!
Comentário palavra por palavra (glossa e gramática)
1) Abertura e selo
ॐ / oṁ — praṇava, a sílaba sagrada; invoca e consagra o espaço da prática.
आदिनाथाय / ādināthāya — dativo singular de Ādinātha (ādi “primeiro, primordial” + nātha “senhor, mestre”): “a/para Ādinātha”.
नमः / namaḥ — indeclinável: “reverência, prostração a…”.
Construção clássica: X-āya namaḥ = “reverência a X”. Todo o bloco de epítetos seguintes mantém o dativo, concordando com namaḥ (uso tradicional em mantras). (Repetido no final como selo/fecho auspicioso.)
2) Sequência de epítetos (todos em dativo, concordando com namaḥ)
अनन्तशक्तिपातप्रवाहिणे / ananta-śaktipāta-pravāhiṇe
ananta — “infinito, sem fim”.
śaktipāta — śakti (poder/energia) + pāta (queda/descida) → “descida da energia (graça)”.
pravāhin — adjetivo/substantivo em -in: “aquele que faz fluir / que verte”.
pravāhiṇe — dativo singular (“a/para o que verte”).
Composto: tatpuruṣa-karmadhāraya (“fluxo infinito de śaktipāta” → “ao que verte o fluxo infinito de śaktipāta”).
शून्यतत्त्वस्वरूपाय / śūnya-tattva-svarūpāya
śūnya — “vazio” (aqui: vacuidade plena, śūnyatā).
tattva — “princípio, essência, fundamento”.
svarūpa — “própria forma / natureza intrínseca”.
svarūpāya — dativo singular: “àquele cuja natureza é…”.
Composto: tatpuruṣa (“[cuja] natureza é o princípio do Vazio”).
योगमार्गदीक्षाकर्त्रे / yoga-mārga-dīkṣā-kartre
yoga — “união, integração”.
mārga — “caminho, via”.
dīkṣā — “iniciação, consagração” (lit. “ver/colocar dentro”, infundindo visão/energia).
kartṛ — “agente, realizador”.
kartre — dativo singular: “ao que realiza”.
Composto: tatpuruṣa (“ao realizador da iniciação no caminho do yoga”).
करुणारससिन्धवे / karuṇā-rasa-sindhave
karuṇā — “compaixão”.
rasa — “sabor, essência, néctar (místico)”.
sindhu — “oceano”.
sindhave — dativo singular de tema em -u: “ao oceano”.
Composto: genitivo-tatpuruṣa (“ao oceano do néctar da compaixão”).
Observação sintática: Esses quatro epítetos estão em aposto a Ādināthāya e mantêm o dativo por atração de namaḥ. É uma construção consagrada em invocações: “reverência a X, [o que é…], [o que é…]”.
3) A tríplice prece (imperativos; núcleo operativo)
मम चित्तं शुद्धं कुरु / mama cittaṁ śuddhaṁ kuru
mama — “meu/minha” (genitivo de 1ª pessoa).
cittaṁ — “mente (campo cognitivo/afetivo)” (acusativo singular, neutro).
śuddhaṁ — “puro, purificado” (adj., acusativo singular, neutro, concorda com cittaṁ).
kuru — imperativo 2ª sg. de √kṛ “fazer”: “faz, torna”.
→ “Torna pura a minha mente.”
मम हृदयं तेजोमयं कुरु / mama hṛdayaṁ tejo-mayaṁ kuru
hṛdayaṁ — “coração” (neutro, acusativo sg.).
tejo-mayaṁ — “composto/cheio de tejas (luz, fulgor, potência)” (-maya = “feito de/impregnado de”).
kuru — “faz, torna”.
→ “Faz do meu coração um corpo de luz (um coração luminoso).”
मम आत्मानं स्वात्मन्येव लीनं कुरु / mama ātmānaṁ svātmany eva līnaṁ kuru
ātmānaṁ — acusativo sg. de ātman (“si-mesmo, eu profundo”).
svātmany — locativo sg. de svātman (“no Teu próprio Ser” — sva é reflexivo ao sujeito, aqui Ādinātha).
eva — partícula enfática: “apenas, precisamente, de fato”.
līnaṁ — “dissolvido, absorto” (particípio passado de √lī “dissolver-se”).
kuru — “faz, torna”.
→ “Faz o meu eu dissolver-se apenas no Teu próprio Ser.”
Observação tradicional:
A tríplice súplica progride do mental (citta) → afetivo/psíquico (hṛdaya) → ontológico (ātman). É um gesto clássico de prārthanā (prece) com três verbos no imperativo (kuru, kuru, kuru), ecoando o ritmo tripartido de muitas estotras e o “trika” (três passos ao centro).
Por que essa estrutura é “tradicional”?
Āhvāna (chamado) + Namaḥ (prostração dativa)
oṁ ādināthāya namaḥ estabelece quem é invocado e a postura devocional. O dativo com namaḥ é a fórmula pan-índica de reverência.
Guṇa-kīrtana (louvor de atributos)
Os quatro epítetos em dativo (ananta-śaktipāta-pravāhiṇe… sindhave) nomeiam qualidades do princípio invocado: fonte da graça, natureza de śūnya-tattva, iniciador, oceano de compaixão.
Isso ancora a invocação teologicamente: dizemos por que esse princípio é digno de ser invocado.
Prārthanā (pedido)
A tríplice fórmula com kuru é sucinta, direta e transformativa: purificar mente, inflamar o coração, dissolver o eu no Ser.
O encadeamento espelha a pedagogia interna das camadas de sutileza (do denso ao sutilíssimo).
Bhadra-anta (fecho auspicioso)
Repetir oṁ ādināthāya namaḥ sela a invocação: abre-se com o Nome, age-se no meio com louvor e pedido, fecha-se retornando ao Nome (ciclo completo).
Tipologia dos compostos (samāsa) usados
ananta-śaktipāta-pravāhiṇe — composto complexo: karmadhāraya (“śaktipāta” qualificado por “ananta”) + sufixo agentivo -in (pravāhin) no dativo.
śūnya-tattva-svarūpāya — tatpuruṣa determinativo: “aquele cuja natureza é o ‘tattva’ do ‘śūnya’”.
yoga-mārga-dīkṣā-kartre — tatpuruṣa: “agente da iniciação do caminho do yoga”.
karuṇā-rasa-sindhave — ṣaṣṭhī-tatpuruṣa (genitivo implícito): “oceano do néctar da compaixão”.
Observações de transliteração e pronúncia (IAST)
Ā/ā, Ī/ī, Ū/ū marcadas com macron = vogais longas (tempo duplo).
Ṛ/ṛ (vocálico), Ṅ/ṅ, Ñ/ñ, Ṇ/ṇ (nasais), Ś/ś, Ṣ/ṣ (sibilantes), Ḍ/ḍ, Ṭ/ṭ (retroflexas) mantêm distinções fonêmicas importantes.
Exemplos: ādināthāya (vogais longas), śaktipāta (ś), pravāhiṇe (ā longa; ṇ retroflexo), svātmany (sandhi de sva + ātmani → svātmani).
Contexto espiritual de cada epíteto
ananta-śaktipāta-pravāhiṇe — ancora a invocação no coração do sistema INatha: toda verdadeira iniciação é śaktipāta (graça), e Ādinātha é a fonte que verte sem cessar.
śūnya-tattva-svarūpāya — alinha a invocação ao silêncio transcendental (śūnyatā) entendido como plenitude, não carência; ecoa a doutrina do vazio/pleno.
yoga-mārga-dīkṣā-kartre — reconhece Ādinātha como iniciador arquetípico, legitimando a auto-iniciação como recepção direta da sua presença.
karuṇā-rasa-sindhave — assegura a qualidade compassiva do influxo: a graça não violenta, amadurece.
Coerência com a pedagogia INatha
A tríade de pedidos (citta → hṛdaya → ātmān) dialoga com seu Trayakrama (do denso ao sutilíssimo) e com as três iniciações (Pañca, Nava, Ekādaśa).
Repetir a invocação no início (chamado e consagração) e no fim (selo e entrega) transforma cada prática em ato iniciático — preparando para perceber/receber Śaktipāta.


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