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(07) Ṛta e a Lua no Chandra Namaskār: Um ensaio para construção de entendimento.

  • Foto do escritor: INatha
    INatha
  • 18 de ago.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 20 de ago.


Resumo

Este ensaio investiga a relação entre o conceito védico de ṛta (ऋत, ṛta, “ordem, verdade, lei cósmica”) e a figura lunar (चन्द्र, candra / सोम, soma) tal como se manifesta na prática contemporânea conhecida como Chandra Namaskāra (चन्द्र नमस्कार, candra namaskāra, "saudação à Lua"). Parte-se de fontes védicas e pós-védicas, atravessa as informações dos textos clássicos do haṭha e a historiografia moderna do surya/chandra-namaskāra, e conclui com uma leitura fenomenológica — ritual e somática — que situa a saudação lunar como prática corporal que reencena e produz, de modo simbólico e funcional, aspectos da ordem cósmica védica. ScholarWorksWisdom Library


1. Ṛta: definição, alcance e ambiência védica

O termo ṛta é uma categoria nuclear da religiosidade védica: designa a ordem que regula o cosmos, a natureza, o ritual e a ética. Etimologicamente vem do radical  (“mover-se”) com o sufixo -ta, e aparece repetidamente no Ṛgveda como princípio unificador — físico, moral e ritual — que torna as ações e os ritos corretos e eficazes. A literatura científica descreve ṛta como antecedente e base para categorias posteriores como dharma e satya; também é comparada com noções análogas em outras tradições (Maʿat, Logos, Asha). WikipediaBrill


Na prática védica, manter ṛta significava agir de acordo com ciclos naturais (astronómicos, hidrológicos), com prescrições litúrgicas (yajñas) e com normas morais: o rito re-instaurava e sustinha ṛta; por isso a performance correta do sacrifício — incluindo a administração de soma — era concebida como restauradora da ordem universal. ScholarWorkssanskritarticle.com


2. Soma / Chandra: identidades móveis

entre planta, néctar, divindade e Lua

Nos textos védicos soma é simultaneamente um vegetal/infusão ritual, a bebida dos deuses e a divindade que lhe corresponde. A partir das camadas mais tardias do Veda e sobretudo nos Brahmana/Ítaras, há uma progressiva identificação simbólica entre soma e a Lua (चन्द्र, candra): a Lua é concebida como o depósito do néctar divino e como figura animadora da vegetação e dos ritmos líquidos do mundo. Essa identificação permite ler o ciclo lunar como veículo de renovação (o encher-e-minguar do soma) — uma teologia natural que liga a regência lunar à regeneração e à fluidez vitais. Wisdom LibraryWikipedia


Do ponto de vista mitológico e pós-védico (Purāṇas, epopéias), Chandra/Soma também traz narrativas de curas, de penalizações (a história de Dakṣa e o decaimento lunar), e de amṛta (o néctar sobre a lua crescente ligada ao cabelo de Śiva) — todos temas que reforçam a Lua como símbolo de ritmo, memória e periodicidade corpórea. WikipediaWisdom Library


3. Paridade solar-lunar no haṭha e nas tradições tântricas

A dicotomia sol/lua (sūrya / candra) estrutura grande parte da cosmologia técnica do haṭha-yoga e do tantra: a própria palavra haṭha é frequentemente etimologizada como ha = sol e ṭha = lua, implicando uma ciência de equalização e integração das forças solares (pingalā, rajas) e lunares (iḍā, tamas/śakti). Os tratados clássicos do haṭha, assim como comentários modernos, apresentam ida como “a lunar” e pingala como “a solar” — e a prática (á asanas, bandhas, prāṇāyāma) visa harmonizar essas correntes para que a suṣumnā leve à iluminação. rjhssonline.comInternet Archive

Essa renda conceitual é importante: o binómio sol/lua não é apenas cosmológico, é também um mapa energético do corpo sutil (nadīs, bindu, prāṇa) que torna legítima a invenção de práticas corporais que “honram” o Sol (sūrya-praxis) ou a Lua (candra-praxis) como modos de regular as polaridades internas. dn721505.ca.archive.orgInternet Archive


4. História e historicidade de Sūrya Namaskāra

e a emergência do Chandra Namaskāra

Sūrya Namaskāra (सूर्य नमस्कार, sūrya namaskāra) — popularmente conhecido como Sun Salutation — foi incorporado massivamente ao moderno hatha-yoga sobretudo a partir do início do século XX; estudos historiográficos recentes demonstram que a sequência tal como a conhecemos (modelos codificados e de ritmo dinâmico) foi sistematizada e difundida por agentes como o Raja de Aundh, K. V. Iyer e Krishnamacharya — não se trata, portanto, de uma prática textual contínua desde os Vedas, embora o culto solar seja antigo. A investigação de Mark Singleton e revisões em revistas científicas corroboram essa genealogia moderna. PMCin.yoga


Chandra Namaskāra — a "saudação lunar" — surge na historiografia do yoga como uma invenção de meados do século XX, com protocolos difundidos pelo Bihar School of Yoga (Swami Satyananda Saraswati; Asana Pranayama Mudra Bandha, 1969) e variantes posteriores (Kripalu, outras linhagens ocidentais). Ao contrário do surya-namaskāra, que tem uma presença mais forte na memória cultural, o candra-namaskāra mostra maior plasticidade: existem múltiplas sequências, muitas das quais enfatizam lateralidade, abdução/adução, posturas que lembram a meia-lua (ardha candra), e um ritmo respiratório mais lento e contemplativo. yogkulam.orgKripalu

Conclusão histórica breve: a saudação lunar é, em larga medida, um produto moderno-tradicional — afirmando continuidade simbólica (honrar a Lua) e discontuidade técnica (sequências inventadas/ padronizadas no século XX). yogainternational.comYoga Journal


5. Estrutura prática do Chandra Namaskāra e variações relevantes

As versões canónicas (p.ex. a publicada por Satyananda/Bihar) tendem a apresentar entre 12 e 18 posições que enfatizam: aberturas laterais, Ardha Chandrāsana (meia-lua), Goddess (posturas abduzoras), variações de Triangle e Warrior adaptadas para lateralidade, e frequentemente fecham com Śaśaṅkāsana (postura do coelho/curva sentada) — todas coordenadas com inalações e exalações longas, visualização lunar e, ocasionalmente, mantras/meditação. Kripalu e outras linhagens criaram variantes que são menos simétricas e mais acessíveis, além de versões sentadas e restaurativas. yogkulam.orgKripaluYoga Journal


Do ponto de vista pedagógico, o candra-namaskāra tem sido recomendado para: práticas noturnas, para pessoas que desejam acalmar o sistema nervoso, para fases da vida (pré-menstrual e pós-exertionais) em que o efeito restaurador é prioritário, e como contrafluxo a sequências aquecedoras. Essas aplicações aparecem em manuais contemporâneos e em literatura de divulgação. Yoga JournalBoreal Bliss Yoga Retreats


6. Leitura funcional: como Chandra Namaskāra re-encena Ṛta

Proponho aqui três níveis complementares de leitura — semântica, performativa e fisiológica — que articulam por que e como Chandra Namaskāra pode ser pensado como prática que participa, simbólica e materialmente, daquilo que ṛta designa.


6.1 Semântico-ritual

Ṛta, enquanto norma cósmica, é mantido pela ação correta (yajña, rito) e pela correspondência entre microcosmo e macrocosmo. A saudação lunar, ao homenagear a Lua (o soma que se renova), é uma miniatura ritual: praticada segundo ritmo (respiração e movimento) e, por vezes, tempo (lua cheia, lua nova), a sequência funciona como gesto que reafirma a ordem cíclica, reconhecendo e sincronizando o corpo humano com os ritmos lunares que, na cosmologia védica, sustentam a vida vegetal e os humores. Em termos védicos, pode-se dizer que a prática é uma forma contemporânea de restauração de ṛta — isto é, alinhamento do sujeito com um ciclo natural reconhecido como ordenante. ScholarWorksWisdom Library


6.2 Performativo-somático

O gesto de «saudar» a Lua é uma encenação: a sequência modela espacialmente a lateralidade e a abertura, trazendo a atenção para o eixo iḍā / piṅgalā (lua/sol) e para o contato com o solo e com a respiração. A alternância entre posturas de abertura lateral, extensão suave e fechamento cria um fluxo que simboliza o encher/esvaziar lunar (soma), tornando visível uma ordem cíclica interior. Esta performatividade reifica ṛta como padrão de ação — não como proposição teórica, mas como hábito corporal que reconstitui uma concordância entre movimentos humanos e ritmos celestes. Internet ArchiveScribd


6.3 Fisiológico e psicofisiológico

Técnicas de respiração lenta e movimentos gentis, frequentemente incorporados ao Chandra Namaskāra, são conhecidas por favorecer aumento do tónus parassimpático (maior variabilidade da frequência cardíaca, redução de ansiedade), mecanismo que explica cientificamente o efeito “calmante” frequentemente relatado para a saudação lunar. Estudos sobre slow breathing e práticas yoguícas mostram efeitos sobre o nervo vago, HRV e estados de vigilância/ repouso — por isso, em termos modernos, a prática lunar pode ser vista como uma tecnologia corporal para restabelecer um ritmo biológico equilibrado, o que correlaciona com a noção de ṛta enquanto ordem restauradora. PMC+2PMC+2


7. Notas hermenêuticas e cautelas metodológicas


  1. Historicidade: há uma diferença entre a mitologia/ideologia védica que constrói ṛta e a praxis moderna do Chandra Namaskāra. Ler o candra-namaskāra como «tradição contínua» seria historicamente impreciso: trata-se de uma prática moderna inspirada em temas tradicionais. Essa distinção não anula, porém, a validade simbólica e performativa da prática. PMCyogkulam.org

  2. Pluralidade de variantes: não existe um único Chandra Namaskāra canónico; professores e escolas adaptaram sequências conforme objetivos terapêuticos, pedagógicos e estéticos. Qualquer proposta interpretativa deve explicar qual variante toma como objeto. yogaeasy.com

  3. Cuidado teórico: vincular ṛta a práticas corporais exige cuidado: ṛta é um conceito polissêmico, teológico e ritual; a leitura de que uma saudação corporal «restaura ṛta» é, antes, uma metáfora heurística poderosa — útil para pensar continuidade simbólica entre cosmologia védica e práticas corporais modernas — do que uma afirmação de identidade literal entre rito védico e sequências modernas. Wikipedia


8. Implicações para prática, ensino e investigação


  1. Prática clínica e contemporânea: ensinar Chandra Namaskāra com ênfase em respiração prolongada e em movimentos laterais oferece uma ferramenta coerente para regulação autonómica (redução de arousal), adequada para práticas noturnas ou para populações sensíveis ao excesso de estimulação (insónia, ansiedade). Recomenda-se explicitamente calibrar velocidade, amplitude e intensidade — e usar exames de HRV quando o objetivo for investigar efeitos autonómicos. PMC+1

  2. Uso ritual e comunitário: em contextos onde se deseja resgatar a dimensão litúrgica, a Chandra Namaskāra pode ser integrada a ciclos lunares (lua cheia/ lua nova) e a leituras de textos que falem do soma/chandra, como forma de revigorar uma práxis comunitária que remete à ṛta. Deve-se, porém, distinguir entre apropriação cultural sensível e invenção esotérica sem base. Wisdom Library

  3. Pesquisa futura: sugiro três linhas de investigação: (a) etnográfica — documentar variantes regionais e escolares do Chandra Namaskāra; (b) historiográfica — aprofundar a arcada cronológica entre as primeiras aparições em manuais do século XX e as genealogias discourses; (c) experimental — RCTs que comparem efeitos autonómicos e psicológicos de Chandra vs Surya Namaskāra, com medidas de HRV, cortisol e relato subjetivo. yogkulam.orgPMCScienceDirect


Conclusão

A relação entre ṛta e Lua quando aplicada à prática do Chandra Namaskāra articula-se como um campo híbrido: teológico-simbólico (soma/Chandra como agentes de renovação), técnico-corporal (sequências que encenam lateralidade e ritmo lunar) e neurofisiológico (efeitos de regulação autonómica por respiração lenta e movimento suave). O Chandra Namaskāra, embora seja em grande parte uma formulação moderna, oferece hoje um dispositivo prático pelo qual os praticantes — quer com intenção ritual, terapêutica ou pedagógica — possam experimentar, reconstituir e «testar» uma forma contemporânea de ṛta: a concordância entre corpo, respiração e ciclos naturais. ScholarWorksyogkulam.orgPMC


Bibliografia (selecionada — leituras recomendadas)

(A seguir, conjunto amplo; marcar como ponto de partida para aprofundamento.)


  • Das, Bhupendra Chandra. Vedic Concept of ṚTA (artigo / PDF — introdução e análise). ScholarWorks

  • Johnston, Lucas F.; Bauman, Whitney — entrada e discussões sobre ṛta em compêndios contemporâneos; ver síntese em Oxford/Brill. BrillWikipedia

  • The Rig-Veda — traduções e comentários; ver hinos que mencionam ṛta (ex.: RV 1.68 e passagens relacionadas). Wisdom Librarykyl.neocities.org

  • Wisdom Library / Wisdomlib — ensaio sobre Soma e sua identificação com a Lua (boa síntese de fontes védicas e brāhmaṇicas). Wisdom Library

  • Hatha Yoga Pradīpikā (traduções e estudos críticos; ver ed. Mallinson & Singleton). dn721505.ca.archive.orgInternet Archive

  • Mallinson, James; Singleton, Mark (eds./transl.) — Roots of Yoga (contextualização histórica e textos). Internet Archive

  • Singleton, Mark — Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice (história do surya namaskāra e da “modernização” do asana). in.yoga

  • Venkatesh, L. P.; Vandhana, S. — “Insights on Surya namaskar from its origin to application towards health” — Journal of Ayurveda and Integrative Medicine (revisão). PMC

  • Satyananda Saraswati — Asana Pranayama Mudra Bandha (Bihar School of Yoga, 1969): publicação que inclui Chandra Namaskāra (edição clássica). yogkulam.org

  • Kripalu Center — recursos práticos e história/variações do Chandra Namaskāra (texto de divulgação com notas sobre variantes). Kripalu

  • Yoga Journal — artigos práticos sobre Chandra Namaskāra e suas variações, com notas pedagógicas. Yoga Journal

  • Revisões científicas sobre respiração lenta / pranayama e sistema nervoso autónomo (v.g., Breathing Practices for Stress and Anxiety Reduction, PMC) — evidência contemporânea sobre efeitos parassimpáticos. PMC+1

  • White, David Gordon — Sinister Yogis; The Alchemical Body; Kiss of the Yogini (estudos sobre tantra e trajetórias históricas do haṭha e seus contextos esotéricos). University of Chicago PressPagePlace

 
 
 

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