Āsana (आसन): Levantamento extensivo e crítico do termo.
- INatha

- 15 de ago.
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Atualizado: 15 de ago.
Introdução
O termo sânscrito आसन (āsana), comumente traduzido como “assento” ou “postura”, constitui um elemento central nas tradições ióguicas e tântricas do sanātana dharma. Sua origem etimológica remete à raiz verbal ās, “sentar-se” ou “estar”, e seu campo semântico evolui do significado literal de “lugar de assento” para uma noção técnica que engloba posturas meditativas, assentos rituais e, mais tarde, um repertório físico diversificado.
Desde as primeiras referências nas Upaniṣads e na Bhagavad-gītā, passando pela formulação clássica dos Yoga Sūtras — que definem o āsana como “firme e confortável” —, o conceito foi amplamente desenvolvido no tantrismo, na literatura do Haṭha Yoga medieval e na tradição Nātha, onde adquire funções energéticas e rituais precisas.
A presente pesquisa analisa, com base em fontes primárias e estudos acadêmicos, a trajetória histórica e semântica de āsana, destacando suas dimensões simbólicas, técnicas e culturais, e problematizando a transformação que o termo sofreu na modernidade, quando se consolidou como prática física autônoma de alcance global.
Resumo. Este estudo examina de modo detalhado o termo sânscrito आसन (āsana), desde sua etimologia e sentidos lexicais até suas aplicações nos textos do sanātana dharma, no tantrismo (com atenção especial ao corpus Siddha-Siddhānta / tradição Nātha), na literatura haṭha-yóguica medieval e em sua transformação na modernidade. A pesquisa apoia-se em léxicos sânscritos (Monier-Williams, Apte), em fontes primárias (Upaniṣads, Bhagavad-gītā, Yoga Sūtras, Hatha-textos, textos nātha) e em estudos críticos modernos (Mallinson, Singleton, entre outros). Onde cabe, apresento o original devanagari, a transliteração IAST e tradução para o português. sanskrit-lexicon.uni-koeln.dedsal.uchicago.eduyso.soas.ac.uk
1. Etimologia e campo semântico
Forma e raiz. O termo sânscrito आसन (āsana) deriva do verbo raiz आस् / आस् (ās, “sentar”, “estar”), e lexicalmente designa originalmente um assento, uma posse de assento ou a ação de sentar-se; no decorrer do tempo o sentido estende-se para “postura” ou “modo de ficar/assentar o corpo”. A entrada em léxicos clássicos (Monier-Williams, Apte, dicionários digitais) confirma essa evolução semântica e as variantes de uso. sanskrit-lexicon.uni-koeln.desanskritdictionary.com
Relações léxicas. Em composições e composto-técnicas (vajrāsana, padmāsana, siddhāsana etc.), āsana conserva o núcleo “assento/postura” mas cada composto especializa a função (ex.: padmāsana = “assento em lótus”). A polissemia (assento ritual, assento de autoridade, postura meditativa, posição terapêutica) é recorrente na tradição sânscrita e nas literaturas dhármicas. sanskritdictionary.com
2. Atestação clássica e uso no sanātana dharma
Vedicidade e Upaniṣads. Embora o termo em seu sentido técnico de “postura meditativa” se consolide depois, já encontramos prescrições para manter o corpo ereto e imóvel — condições que presidem a ideia de āsana — em Upaniṣads antigas. Por exemplo, a Śvetāśvatara-Upaniṣad indica manter “o corpo com peito, pescoço e cabeça eretos” como condição para a meditação. Esse tipo de formulação situa āsana como prática preparatória para contemplação/meditação. vedantastudents.com+1
Exemplo (sânscrito): त्रिर्-उन्नतं स्थाप्य समानं शरीरम् ... (transcrição e contexto em Śvetāśvatara). vedantastudents.com
Bhagavad-gītā (cap. 6). O capítulo dedicado à dhyāna (meditação) recomenda ao praticante manter o corpo ereto e imóvel e fixar o olhar no próprio nariz (versos 6.11–6.13), apontando āsana como condição prática para concentração mental:
समं कायशिरोग्रीवं धारयन्नचलं स्थिरः ... (samaṃ kāya-śira-grīvaṃ dhārayann achalaṃ sthiraḥ). gitasupersite.iitk.ac.inBhagavad Gita
Patañjali e a definição clássica. No corpus clássico do raja/classical yoga, Patañjali oferece a formulação sintética e influente: स्थिरसुखमासनम् (sthira-sukham āsanam), normalmente traduzida por “o āsana é (aquele) firme/estável (sthira) e confortável/agradável (sukha)”. A sutra II.46 tem servido como paradigma hermenêutico para interpretações de āsana como postura adequada ao propósito meditativo — um estado que combina estabilidade e facilidade. Biblioteca da SabedoriaInternet Archive
Observação interpretativa: a tradução literal “estável e confortável” é deliberadamente concisa; comentários clássicos e modernos (e.g. comentários medievais e traduções críticas) exploram implicações performativas (ausência de esforço desigual, suspensão de agitação mental) que ultrapassam a simples ergonomia física. Academia
3. Āsana no tantrismo (função ritual e sede energética)
Asana como assento ritual. Nos textos tântricos e kaula, āsana aparece tanto em sentido literal (tipo de assento sobre o qual o praticante se instala para mantra, homa, pūjā) quanto em sentido simbólico (assento do poder ritual, do sceptrum divino). O Kularnava Tantra, por exemplo, prescreve o tipo de assento (algodão, tecido, ou peles apropriadas) para práticas de japa e puja e relaciona explicitamente āsana com eficácia ritual. Livros SagradosTantra Yoga Thailand
Tantra e a topografia do corpo. No tantrismo, o assento físico também é plausivelmente correlato a um “assento” interior (cakra/adhāra), de modo que āsana funciona como apoio para práticas de pranayama, mantra e interiorização (laya, kundalinī). Textos kaula e siddha tratam o āsana como condição de segurança energética para manipular prāṇa durante as práticas mais sutis. Livros SagradosNathas
4. Āsana no corpus Nātha e no Siddha-Siddhānta
(ênfase na experiência siddha)
Tradição Nātha / Siddha-Siddhānta. O conjunto de textos atribuído a Gorakṣanātha e à linha Nātha (p. ex. Siddha-Siddhānta Paddhati) trata āsana como um dos elementos institucionais da sādhanā dos siddhas; vários trechos descrevem posturas particulares, indicações para repetição de mantras enquanto se mantém um āsana, e a relação entre āsana, mudrā e retenções respiratórias. A edição/compilação disponível e estudos históricos da tradição Nātha documentam esse uso. Internet ArchiveSpiritual Paramahamsa
Ênfase prática. Nas fontes nātha frequentemente o objetivo último do āsana é habilitar longas práticas de japa, meditação e laya: o corpo deve tornar-se um instrumento imperturbável, apto a conservar calor, prāṇa e atenção. A literatura dos siddhas, por vezes, adota linguagem de “kāya-siddhi” (realização pelo corpo) em que āsana participa como técnica. Integral YogaInternet Archive
5. Haṭha-yoga medieval: listas, funções e tipologias
Textos canônicos do haṭha. A partir da Idade Média encontramos manuais técnicos que tratam āsana de modo sistemático. Entre eles: Haṭha-Yoga Pradīpikā (Svātmarāma), Gheraṇḍa Saṃhitā, Śiva Saṃhitā, e a Haṭha Ratnāvalī. Enquanto a Haṭha-Yoga Pradīpikā descreve um conjunto limitado (c.15 asanas, muitos sentados), a Gheraṇḍa Saṃhitā lista c.32 asanas “úteis” e a Haṭha Ratnāvalī é uma das primeiras tentativas de enumerar simbolicamente as “84 asanas” tradicionalmente atribuídas a Śiva. Nos textos haṭha, as asanas são tradicionalmente justificadas como preparação para retenções respiratórias (kumbhaka), ativação de bandhas e desbloqueio das nādīs. Archive.orgHLT BMEWikipedia
Função técnica. Em muitos desses tratados, a descrição do āsana tem objetivo direto: permitir pranayama eficaz, conservar o calor (tapas), e estabilizar o corpo para meditações longas. Assim, as primeiras asanas documentadas são majoritariamente posturas sentadas e posturas estáticas (pouco ênfase — nos textos medievais — em sequências dinâmicas ou em repertórios acrobáticos). Archive.orgInternet Archive
6. Classificações e nomes (breve inventário histórico)
Nomes clássicos recorrentes. Entre as asanas tradicionalmente mais citadas estão siddhāsana सिद्धासन, padmāsana पद्मासन, baddha-konāsana बधकोनासन/भद्रासन, vajrāsana वज्रासन, simhāsana सिंहासन, śirṣāsana शीर्षासन (em algumas tradições com nome antigo kapālāsana), mayūrāsana मयूरासन etc. Listas variam entre textos; a noção simbólica dos “84” asanas é mais um marco canônico que uma lista universal fixa. Wikipedia+1
Tipologia funcional (síntese). Do ponto de vista funcional e histórico, propõe-se uma tipologia mínima:
Asanas de assento/meditação (p. ex. padmāsana, siddhāsana).
Posturas para pranayama / bandha (posturas estáveis que assistem retenções).
Posturas de atividade tônica/terapêutica (p. ex. dhanurāsana, bhujangāsana em Haṭha).
Posturas dinâmicas e acrobáticas (predominantemente desenvolvimento moderno; raras nos textos medievais). Archive.orgWikipedia
7. Transformação moderna: o āsana como prática física extensiva
Mudança de ênfase. Nos séculos XIX–XX observou-se uma transformação significativa: āsana deixou de ser, majoritariamente, um “assento meditativo” para se tornar uma prática física extensa, técnica e sistemática (com centenas de posturas codificadas no Ocidente e na Índia moderna). Pesquisadores contemporâneos argumentam que essa transformação resulta de uma confluência complexa: transmissão de tradições locais, intercâmbio com ginástica e cultura física europeia, inovações por mestres modernos (Krishnamacharya) e popularização por professores (Iyengar, Pattabhi Jois, entre outros). A análise crítica de Mark Singleton e a coletânea de Mallinson & Singleton são referência central para esse argumento. Amazonyso.soas.ac.uk
Exemplar (Iyengar). A obra Light on Yoga (B. K. S. Iyengar, 1966) ilustra essa nova dimensão: um manual enciclopédico com muitas dezenas/centenas de asanas, instruções passo-a-passo e fotografias, que ajudou a transformar a prática em currículo técnico global. Wikipedia
Notas metodológicas. Importa dizer que a história não é unívoca: existe continuidade textual e técnica entre a tradição medieval e a modernidade (ex.: continuidade em algumas posturas clássicas), mas também há inovações e rearranjos formais que marcam o caráter contemporâneo do āsana globalizado. A bibliografia crítica recente discute com nuance essa continuidade/descontinuidade. yso.soas.ac.ukAmazon
8. Problemas de interpretação histórica e arqueológica
Pashupati / Indus. A hipótese de que representações arqueológicas (p. ex. o chamado “selo Pashupati” de Mohenjo-daro) documentariam prática ioga antiga é controversa: desde John Marshall (primeira proposta) até críticas recentes (p. ex. Wendy Doniger, Geoffrey Samuel), o argumento é que a interpretação iconográfica é incerta e não permite extrapolações diretas sobre técnicas de āsana comparáveis às fontes clássicas. A prudência historiográfica é necessária: conexões são possíveis, mas dificilmente demonstráveis de forma conclusiva. WikipediaBellarmine College of Liberal Arts
9. Conclusões provisórias
Núcleo semântico: Āsana nasce lexicalmente como “assento” e, em contexto técnico religioso, designa o assento corporal apto ao exercício meditativo e ritual. sanskrit-lexicon.uni-koeln.de
Função tradicional: nos sistemas clássicos (Upaniṣads, Bhagavad-gītā, Yoga Sūtras, haṭha) āsana é sobretudo condição para concentração, pranayama e práticas tântricas; listas extensas e descrições detalhadas aparecem sobretudo na literatura haṭha medieval. gitasupersite.iitk.ac.inBiblioteca da SabedoriaArchive.org
Transformação moderna: a ênfase em repertórios posturais amplos e em āsana como prática física autónoma é um fenómeno principalmente moderno (século XX), historicamente contextualizável e sujeito a estudos críticos. AmazonWikipedia
O percurso histórico e semântico do termo आसन (āsana) revela um conceito de grande densidade cultural e filosófica, que atravessa milênios mantendo, em seu núcleo, a ideia de um assento ou postura que sustenta e facilita a interiorização da consciência. Das prescrições meditativas das Upaniṣads às codificações técnicas do Haṭha Yoga medieval e às elaborações simbólico-energéticas da tradição Nātha, o āsana se mostra menos como uma ginástica postural e mais como uma tecnologia corporal a serviço da sādhanā e da integração mente-corpo. No entanto, o século XX testemunhou uma inflexão marcante: a prática de āsana expandiu-se e ganhou autonomia, moldada pelo diálogo com a cultura física, pela sistematização pedagógica e pela globalização do yoga. Essa transição histórica — da postura meditativa tradicional ao repertório do chamado Yoga Postural Moderno — será o foco de nosso próximo estudo, no qual analisaremos os fatores socioculturais, as influências externas e as reelaborações internas que transformaram o āsana em uma das práticas corporais mais difundidas do mundo contemporâneo.
10. Bibliografia selecionada (fontes primárias e estudos secundários)
Fontes primárias / edições e traduções:
Patañjali, Yoga Sūtras. Edições críticas e traduções modernas; ver edição/tradução de Edwin F. Bryant (The Yoga Sūtras of Patañjali). Internet Archive
Bhagavad-gītā (cap. 6: dhyāna/āsana). Texto crítico e traduções (várias edições; ver Gita Supersite / edições críticas). gitasupersite.iitk.ac.in
Haṭha-Yoga Pradīpikā (Svātmarāma). Edições e traduções; disponível em reimpressões e arquivos (cf. HYP ed./tradução). Archive.org
Gheraṇḍa Saṃhitā; Śiva Saṃhitā — tratados haṭha com capítulos sobre āsana. (ver edições e traduções, inclusive em Roots of Yoga). HLT BMEAmazon
Siddha-Siddhānta Paddhati (tradição Nātha; ed. compil. por Kalyani Mallik; manuscritos/edições em arquivo). Internet Archive
Estudos e edições críticas (seleção):
Mallinson, James; Singleton, Mark (eds.). Roots of Yoga: Ancient Texts and Modern Research (Penguin Classics, 2017). Coleta traduções e comentários sobre textos tradicionais de yoga. yso.soas.ac.uk
Singleton, Mark. Yoga Body: The Origins of Modern Posture Practice (Oxford University Press, 2010). Análise histórica crítica da modernização do āsana. Amazon
Iyengar, B. K. S. Light on Yoga (1966). Manual influente para a sistematização moderna do repertório de asanas. Wikipedia
Textos tântricos e fontes contextuais:
Kularnava Tantra (capítulos sobre preparação, assentos e práticas rituais). Edições e traduções disponíveis (consultar edições críticas e traduções clássicas). Livros Sagrados
Observações de método: as edições variam em qualidade crítica; recomendo consultar edições críticas e traduções acadêmicas (Mallinson; Bryant; edições universitárias) para trabalho filológico acurado. yso.soas.ac.ukInternet Archive
11. Glossário mínimo (Devanagari — IAST — Português)
आसन — āsana — assento; postura (meditativa / ritual / física). sanskrit-lexicon.uni-koeln.de
स्थिर — sthira — firme, estável. (cf. sthira-sukha āsana). Biblioteca da Sabedoria
सुख — sukha — confortável, leve, agradável. Biblioteca da Sabedoria
सिद्ध — siddha — “realizado”, “perfeito” (usado em siddhāsana e em siddha-tradition). Internet Archive
हठ — haṭha — (no contexto) potência física/energia (designa família de textos e práticas de yoga físico). Archive.org
Nātha / Siddha-Siddhānta — escola/tradição associada a Matsyendra/Gorakṣanātha, com corpus técnico (ex.: Siddha-Siddhānta Paddhati). Internet Archive
12. Sugestões para pesquisa avançada (bibliográfica e arquivística)
Consultar edições críticas em inglês de Mallinson & Singleton ( Roots of Yoga ) — reúne traduções que facilitam confrontar textos medievais. yso.soas.ac.uk
Ler Yoga Body (Singleton) para compreender a problemática da modernidade do āsana e os debates historiográficos. Amazon
Conferir edições críticas/manuscritas do Siddha-Siddhānta Paddhati (Archive.org / coleções índicas) para trabalho sobre Nātha. Internet Archive
Estudar tratados haṭha em edições críticas (Svātmarāma, Gheraṇḍa) para comparação de listas e funções técnicas. Archive.orgHLT BME
Nota final sobre método e limites do levantamento
Este levantamento foi composto a partir de fontes primárias editadas/online e de estudos secundários contemporâneos — selecionando edições acadêmicas sempre que disponível. A historiografia do āsana envolve conjecturas interpretativas (especialmente quando se tenta “provar” continuidade entre iconografia arcaica e práticas técnicas posteriores); portanto, em pontos sensíveis (p.ex. interpretação do selo de Mohenjo-daro) privilegiei uma apresentação que expõe controvérsias e aponta leituras críticas. Wikipedia


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