Extrapolação Conceitual dos Pūrvakrama-s: Intersecções Tradicionais, Filológicas, Pedagógicas e Numerológicas.
- INatha

- 21 de ago.
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Atualizado: 24 de ago.
1. Introdução: a noção de krama e sua elasticidade semântica
O termo krama (क्रम), proveniente da raiz √kram (“dar passos, mover-se, proceder”), possui desde o Ṛgveda um campo semântico que oscila entre o “andar ordenado” e o “procedimento ritual”. No Ṛgveda (RV X.114.9), encontramos referências a kramáḥ como os “passos” do sacrifício e do cosmos, sugerindo que a ordem sequencial não é meramente pragmática, mas também ontológica.
Com o tempo, krama torna-se central em contextos de pedagogia espiritual. Os Krama-s do Śaiva Tantra da Caxemira, por exemplo, no Krama-darśana, descrevem “progressões da consciência” em gradações de revelação, o que ecoa na noção aqui explorada de pūrvakrama enquanto “passo anterior” ou “preparação”.
A justaposição com pūrva (पूर्व) (“anterior, preliminar, primeiro”) confere à expressão pūrvakrama um valor duplo: 1) pedagógico-didático (o passo que precede outro); 2) soteriológico (a preparação para uma realização mais alta). É esta polissemia que permite a extrapolação conceitual para uma metodologia de práticas preparatórias do yoga.
2. Purvakrama na tradição védica: a dimensão sacrificial
Nos Śrauta-sūtra-s e no corpus ritualístico védico, o “preliminar” (pūrva) é sempre o alicerce do “principal” (pradhāna). Assim, cada yajña é precedido por um conjunto de ações chamadas pūrvāṅga-s (membros preliminares), que não são dispensáveis, mas parte essencial da eficácia ritual.
Śabara, comentando o Mīmāṃsā-sūtra (II.1.1), enfatiza que o pūrva não é apenas anterior no tempo, mas condicional no sentido lógico: sem o cumprimento do passo anterior, o posterior não floresce. A pedagogia iogue encontra aqui um paralelo direto: os pūrvakrama-s são preparatórios não como apêndices, mas como condições de possibilidade daquilo que virá.
3. Purvakrama no Yoga clássico: Patañjali e o pré-ásana
No Yoga-sūtra de Patañjali (II.29), a enumeração dos aṣṭāṅga-yoga já sugere que o método é uma sucessão: yama-niyama-āsana-prāṇāyāma-pratyāhāra-dhāraṇā-dhyāna-samādhi. Aqui, os primeiros passos funcionam exatamente como pūrvakrama-s do posterior. Vyāsa, em seu Bhāṣya, explicita que “sem o domínio de yama e niyama, a mente não alcança estabilidade no āsana”, o que confirma a leitura lógica-sacramental da sequência.
A leitura metodológica contemporânea de T.K.V. Desikachar reforça este princípio em sua pedagogia: toda prática tem um pūrvakrama que condiciona seu desdobramento. Assim, pūrvakrama se aproxima do conceito de vinyāsa-krama, difundido pela tradição de Krishnamacharya, onde cada passo prepara e gera o próximo, seja no corpo, seja na mente.
4. O espírito de krama no tantra e no śaivismo da Caxemira
O Krama Śaivismo (séc. IX–X), representado por Abhinavagupta e Kshemarāja, entende krama como progressão da consciência em direção ao absoluto. Não é apenas uma sequência temporal, mas uma dinâmica ontológica de expansão da śakti em graus sucessivos. No Tantrāloka (cap. 29), Abhinavagupta descreve o processo meditativo em “ondas” que se sucedem e dissolvem, e chama isso de kramodaya — o “levantar-se em passos”.
Essa concepção dialoga com o uso contemporâneo de pūrvakrama: cada prática é uma onda preliminar que abre espaço para uma onda maior. Assim, o conceito ganha dignidade metafísica além da dimensão pedagógica.
5. Purvakrama como pedagogia iniciática
A tradição guru-śiṣya paramparā sempre preservou a ideia de que a iniciação se dá em etapas. Textos como o Haṭha-yoga-pradīpikā (I.67) já afirmam que práticas avançadas não devem ser transmitidas a quem não consolidou as preliminares, sob risco de perigo.
No budismo, especialmente nas tradições tibetanas, temos um paralelo explícito: os ngöndro (ངོ་གནས་སྒྲོ་, “práticas preliminares”) são o pūrvakrama das práticas mais elevadas de mahamudra ou dzogchen. Sem as acumulações preparatórias, não há maturidade suficiente para as realizações finais.
Assim, a extrapolação de pūrvakrama ao contexto do Método INatha não é apenas um neologismo criativo, mas ecoa o modo como as grandes tradições de transmissão espiritual entendem a lógica do acesso progressivo ao conhecimento transformador.
6. O som dos números: os saṅkhyā como mantras energéticos
A decisão de deixar os numerais “crus” (eka, dvi, tri, catur, pañca, ṣaṭ, sapta, aṣṭa, nava, daśa, ekādaśa) na enunciação dos pūrvakrama-s ressoa com a dimensão mantraica dos números no sânscrito.
No Śatapatha Brāhmaṇa (XI.5.8), a recitação de números é em si ritual, portando força (śakti). O Bṛhadāraṇyaka Upaniṣad (II.3.6) apresenta os números como camadas do Ser, associando o um (eka) ao Ātman.
Manter o numeral como puro som, sem declinação atributiva (-ma), sublinha esta dimensão energética: cada número não apenas quantifica, mas qualifica o estado de preparação. Deste modo, “Eka Pūrvakrama” não é só “primeiro passo”, mas a irrupção do Um na série; “Dvi Pūrvakrama” é a polaridade como pré-condição; “Tri Pūrvakrama” é a tríade como expansão natural, e assim sucessivamente.
A Arquitetura Numerológica dos Purvakramas
Ao longo da história, diversas tradições — da Índia védica à Grécia pitagórica, da Cabala hebraica à ciência dos números chinesa — reconheceram no número uma qualidade arquetípica, anterior à quantidade. O número, nessa perspectiva, não é apenas uma medida, mas um princípio constitutivo da ordem do real. É nesse horizonte que podemos compreender os Purvakramas do Método INatha: como uma escada de onze degraus, onde cada número revela uma forma de consciência, de prática e de integração.
1. Eka Purvakrama — O Início
O número um é a semente. Representa a unidade, a origem não dividida, o ponto de partida absoluto. No Eka Purvakrama temos apenas o āsana. É o primeiro contato do praticante com a disciplina, onde a simplicidade funda a possibilidade de tudo o que virá. O um não compara, não divide: é pura existência.
2. Dvi Purvakrama — A Dualidade
O dois instaura a polaridade: sol e lua, ativo e receptivo, vigília e repouso. O Dvi Purvakrama expressa isso claramente, pois à prática solar do āsana soma-se a prática lunar do yoganidrā. A dualidade aqui não é oposição conflitiva, mas complementaridade. O dois abre o espaço da relação, o jogo de forças que sustenta o equilíbrio.
3. Tri Purvakrama — A Tríade
O três sempre foi visto como número da totalidade dinâmica. Entre o polo solar e o lunar emerge um terceiro elemento: a vibração integradora do bhāvana, da mente produzindo harmonia dentro dos opostos. É o sopro que vivifica a polaridade e que a transforma em tríade. No Tri Purvakrama, já não temos apenas a alternância de opostos, mas a primeira visão de integração: uma realidade composta de três vértices inseparáveis.
4. Catur Purvakrama — A Base
O quatro é o número da fundação, do quadrado, da estabilidade. Com o Catur Purvakrama, a prática se torna sólida, estabelecendo uma base completa: bhāvana como energia mental integradora, āsana solar, yoganidrā lunar e samyama como silêncio do transcendente, do caminho para além da mente. Aqui, o praticante se encontra diante de uma estrutura capaz de sustentar percursos mais elevados.
5. Pañca Purvakrama — A Nova Iniciação
O cinco, em muitas tradições, é número de transição e de expansão. Ele rompe os limites da estabilidade do quatro e abre o caminho para novas dimensões. O pañca purvakrama introduz o bhūta śuddhi, ritual de purificação dos 5 elementos, sinalizando a passagem a um novo campo: da preparação para o Método INatha alcançada no Purvakrama 4, para a preparação para o Haṭha Yoga Natha.
6. Ṣaṭ Purvakrama — A Harmonia
O seis simboliza o equilíbrio harmonioso, a estabilização do movimento. Assim como no hexágono ou na estrela de seis pontas, encontramos uma estrutura simétrica que sustenta dinamismo e paz. O ṣaṭ purvakrama inclui a śvāsa kriyā, técnicas respiratórias que afinam o ritmo interno, conduzindo a um estado de predominância crescente de sattva, a clareza equilibradora.
7. Sapta Purvakrama — A Interiorização do Sagrado
O sete é número axial em quase todas as tradições: sete planetas, sete céus, sete notas, sete chakras. Ele remete à interiorização e ao contato com a dimensão espiritual. No sapta purvakrama, o mantra é introduzido como veículo ritual de alinhamento cósmico. Aqui a prática ultrapassa a técnica e se torna invocação, rito e ressonância.
8. Aṣṭa Purvakrama — O Empoderamento
O oito é número do poder e da transmutação. É o infinito em movimento, o equilíbrio das forças ascendentes e descendentes. No aṣṭa purvakrama, o prāṇāyāma é incorporado, conferindo progressivamente ao praticante a potência da expansão da energia vital. É um patamar de força, disciplina e transformação interior profunda.
9. Nava Purvakrama — O Silêncio
O nove, três vezes três, representa a completude de um ciclo. É o limiar entre o mundo manifesto e o que está além. No nava purvakrama, o mauna-ārambha abre o caminho: o silêncio ritual, início da imersão na grande presença. Aqui, todo o percurso anterior converge para a experiência direta do silêncio como campo originário da consciência.
10. Daśa Purvakrama — A Síntese
O dez é a totalidade retornada à unidade: 1 + 0, o recomeço em outra esfera. No daśa purvakrama, o elemento novo é o mudrā, gesto de síntese que concentra e potencializa todas as forças cultivadas. O dez simboliza a perfeição da roda inteira, a integração do múltiplo em um só gesto. Essa dimensão marca os primeiros contatos com a embrionária energia ascendente de kundaliní.
11. Ekādaśa Purvakrama — A Transição
O onze, número de passagem, simboliza aquilo que transcende a completude do dez. Ele marca o início de uma nova série, uma abertura ao infinito. O ekādaśa purvakrama introduz conjuntamente o caturanga sādhanā, o Rāja Yoga de Patañjali e o mergulho no pranava ÔM. Aqui, a prática deixa de ser apenas preparatória e se abre à iniciação do Haṭha Yoga Natha. O onze não encerra, mas projeta o praticante no mistério do śaktipāta, a descida da energia transformadora.
A progressão dos Purvakramas é, portanto, mais que uma metodologia pedagógica: é uma escada numerológica, em que cada número revela uma qualidade ontológica da prática. O Método INatha, ao estruturar sua pedagogia nesta ordem, inscreve-se numa tradição universal que vê nos números não apenas sinais de contagem, mas símbolos de revelação.
7. Conclusão: a extrapolação conceitual como fidelidade hermenêutica
Ao chamar os estágios preparatórios do Método INatha de Pūrvakrama-s, não se trata de forçar a tradição, mas de reencontrar no conceito védico-tântrico uma chave de leitura pedagógica e iniciática contemporânea. A força desta extrapolação está no fato de que ela:
Alinha-se com o védico, ao assumir o preliminar como condição do principal;
Dialoga com o yoga clássico, ao reconhecer a progressão de Patañjali como pūrvakrama do samādhi;
Conecta-se ao tantra e ao śaivismo da Caxemira, ao entender krama como expansão da consciência;
Encontra eco no budismo tibetano, com seus preliminares indispensáveis;
Honra a dimensão mantraica, ao preservar os numerais como sons arquetípicos.
Assim, o conceito não é invenção isolada, mas ressonância criativa e legítima dentro da tapeçaria maior das tradições ióguicas e espirituais.
Bibliografia
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